uma história para contar

Na casa três de uma quadra três, Leide vive ao lado de seus livros empoeirados ao perfume das rosas que cuida com tanto amor. Nunca se viu um jardim tão acariciado, é cuidado há cada cinco minutos. Mas às vezes demora algumas horas para que ela varra as flores caídas no chão, Como no dia em que resolveu tirar a poeira dos livros. Sua neta estava ali do seu lado, observando aquele esforço em ler as letras miudinhas dos livros que sempre fizeram parte do seu cotidiano. Histórias eram narradas pela professora míope que não se negara em fazer as vozes mais esquisitas possíveis para contar sobre figuras achadas nos livros com cheiro de novo. Os ouvintes sequer haviam visto o personagem que Leide narrava, mas sabiam definir a aparência deles bem melhor que o produtor da adaptação ao cinema. Eram deficientes visuais. Mas imaginação deles ia tão longe quanto os pássaros das histórias.

“Qual a história desse desenho?” Foi a pergunta que Leide fez para a neta, anos atrás. A menina tinha, então, por volta de seus 8 anos, e fazia do lápis de cor a sua diversão no quintal da casa três. A avó sabia muito bem o que a criança desenhava, mas insistia em perguntar o que era. E dizia que ela deveria escrever. Com uma letra que se esforçava em aparentar-se bonita, mas que só com muito esforço daria para ler, a neta contava as histórias para uma contadora de histórias: sua avó. De tanto desenhar para depois explicar em forma de historinha, como a sua primeira referência em Cinderela, aquela letra foi melhorando. Posso dizer que não se tornou bela, mas para grande alegria sua tornou-se decifrável.

A metade dos livros que estavam na estante, foi passada para uma caixa de papelão que Leide encontrou no canto do jardim. Os livros já estavam sem a poeira e mantinham o cheiro que, talvez, só aquele quintal possuía. Culpa das roseiras bem regadas. Mas aquela cena de Leide sentada ao pé da estante com livros de capa dura em seu colo, fez a neta lembrar dos dias que passara a sua infância ali escrevendo. Devido à contadora de histórias perguntar-lhe o significado dos desenhos coloridos entre rosa e lilás, assim, a neta escreveu. E desde então, ela nunca mais parou. "Vó, você se lembra da historinha da Bilu?" Leide lembrava, pois ela decorara. Depois que a neta transferiu para o papel as palavras sobre o seu desenho, a avó levou para seus alunos na escola de Brasília. Um lugar de árvores verdes como as grades, e flores amarelinhas espalhadas por todo o chão. Leide contava com muito vigor sobre a aliá Bilu. Uma elefanta que era caçoada por sua forma avantajada, mas que com seu bom coração e originalidade transformou os seres ao seu redor. Do jeito que Bilu era, ela jamais mudou. ”Que saudade daqueles sorrisos dos meus alunos ao ouvir a Bilu”.

Leide é aposentada e assídua em trocar livros com as vizinhas e terminar um livreto de cruzadinha em poucos dias. Ela só usa a câmera fotográfica para tirar foto das estradas, e talvez a admire mais que a própria viagem. Nos tempos livres, ela borda toalhas para presentes natalinos e futuros enxovais dos netinhos. Netos que até tentam ensina-la à ser amigável com um computador, mas ela nega encarar qualquer tecnologia. Diz que estraga a vista. E volta ao seu lápis apontado cautelosamente, às lembranças dos tempos de uma professora que contou tantas histórias aos seus alunos. Mas que não deixa de contar histórias, porque atéela nunca deixou de fazer história na vida de cada um que ouse ouvi-la.

Já com todos os livros reunidos dentro da caixa e entregues à neta, ela concluiu que estes livros que Leide um dia folheou para contar os segredos escritos nas páginas amareladas, vão ser passados para a próxima geração quando ficarem empoeirados. Essa história nunca vai acabar.

Uma Beatriz
Enviado por Uma Beatriz em 15/04/2015
Código do texto: T5208272
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.