CALA A BOCA, GANGORRA! (EC)

Inútil palavra

Desassossega o silêncio

Eterno contraste

Uma voz calada

Tem mais força que gritar

Ouve-se distante

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“Ih! Chegou o Gangorra”, sussurraram quase todos na mesa do bar do happy-hour.

Gangorra era o apelido de um fulaninho que falava mais que a boca. Quando ele chegava e sentava-se, íamos dando um jeito de levantar e sair.

Não quis ser o primeiro, para não ser desagradável e também porque poderia rir um pouco com as últimas proezas do falastrão.

Ai... ai... ai... ai... ai...

Logo me bateu certo arrependimento, mas como havia acabado de sair uma remessa de bolinhos e uma rodada de cerveja, já que estava no inferno abraçasse o diabo.

É meio difícil acreditar, mas entre uma bebericada e um pastelzinho tentava distrair-me fazendo exercícios orientais zens.

Quase em alfa, vieram-me imagens da infância.

Vi meu avô repreendendo-me, diante de mais uma vez atrapalhá-lo em alguma de suas atividades: “Cala a boca, moleque... Falar é prata, calar é ouro”, garantia com seu sotaque lusitano.

Na alegria da meninice nem ligava e ia falar em outro lugar.

Só fui compreender a sabedoria de meu avô, quando conheci Ofélia. Ela mesma. Aquela que para desespero de Fernandinho, desandava abrir a boca com a certeza absoluta dos ignorantes.

Diante dessa verdade indiscutível, mesmo sem nunca receber qualquer paga em ouro, passei a agir conforme os ditames de vovô.

A opção por falar menos, quase sempre me fez passar ao largo de ser um dos agraciados pelo presidente Abraham Lincoln: “Melhor calar-se e deixar que as pessoas pensem que você é um idiota, que falar e acabar com a dúvida”.

Impossível deixar passar em branco: “Ah! Como seria bom se um dos nossos presidentes agisse assim, falando menos diatribes e fanfarronices”.

Ato falho! Soltem-me! Eu não disse isso!

Ao oposto, tento, até meu curto limite da paciência, ouvir a todos, inclusive aos idiotas, pois em algum lugar li que eles são como relógios parados: “Estão certos duas vezes ao dia”.

Voltei à realidade quando o Carlão levantou-se da mesa dizendo: “Dá um tempo, Gangorra”! E foi embora, jogando sua parte do rateio sobre a mesa.

Falei para dentro: “Calma, gente!” O Gangorra não deve saber que um índio Sioux garantiu no século XIX: “Palavras são como flechas. Lançadas, não podem ser recolhidas”.

Voltei a unir polegares e indicadores... Um pequeno mantra... Relaxe... Respire fundo...

Estou na infância brincando de “telefone sem fio”.

Ah! Ah! Ah!

Era Jabaquara, não Ibirapuera. (bairros da cidade de São Paulo).

Errou de novo...

Era “milho com araruta”, seu bobo... (interatividade aí, pessoal).

Que é isso, mano? Olha o respeito...

Volto, desta vez para mordiscar um bolinho de bacalhau.

Mesmo com todos meus esforços impossível não ouvir partes do “quase diálogo” do Gangorra e do Lazinho, que de porre é um porre. Quase diálogo, sim. Tagarelas falam de assuntos diferentes quando “conversam”, pois nunca estão prestando atenção no coadjuvante que fala em paralelo ao seu protagonista assunto.

Abro os olhos para conferir quantos ainda estão sentados e, num relance, vejo na parede do bar, ao lado de Marilyn e Elvis, uma foto de Luther King.

Pergunto-me: “Será mesmo que o silêncio dos bons é mais preocupante que o grito dos maus”? King afirmou isso baseado em que?

O efeito da cerveja dá a rápida resposta: Já sei. Talvez em Baby e Pepeu quando fora taxativos: ”O Mal é o que sai da boca”.

Quase me intrometo: “Para, Lazinho! Não estica conversa”.

Por que idiotas tanto insistem em dar a última palavra? Soubessem que o silencio não significa necessariamente concordância ou consentimento apesar do que dizem por aí?

Hoje, diante de conversas-mole e papos-furados, aprendi a fazer-me de surdo e sair de fininho.

No caso, a urgência faz-se premente, pois está sobrando pouca gente à mesa.

A vontade é agir como o rei Juan Carlos de Espanha, ao interromper a cascata de asnices proferidas pelo presidente venezuelano Hugo Chávez, durante a XVII Conferência Ibero-Americana, em 2007 e gritar:

¿Por qué no te callas?

Será que Gangorra nunca aprenderá que quem fala muito, acaba sem assunto ou dando bom dia a cavalo?

Quando a namorada do Manquinho chegou para levá-lo, levanto-me e educadamente despeço-me com a tradicional mentira: “Que pena! A conversa está muito boa, mas amanhã tenho que levantar cedo”.

Carioca aproveitou a deixa, não sem antes, com a tradicional verve, provocar-me ao despedir-se de Gangorra: “Precisamos conversar mais”.

Vade retro, Satanás!

Deixei minha parte sobre a mesa e sai rapidinho.

Estava livre.

Com o carro na oficina, Melão olhou-me súplice, na esperança de oferta de carona. Ou teria que esperar o Paulão.

Eu, hein? Fiz que nem vi.

Vai que Gangorra também estivesse sem carro.

Enquanto isso, o garçom trouxe mais cerveja e outra porção.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Palavras e Silêncio que Jamais se Encontrarão

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Pedro Galuchi
Enviado por Pedro Galuchi em 04/05/2015
Reeditado em 04/05/2015
Código do texto: T5230012
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