Um ponto no espaço...

Que nossas experiências definem a forma como vemos o mundo isso é definitivo. Mas nossas impressões são consequência direta do que sentimos pela vida. Se sentimos paixão pela vida, ela irá doer mais, queimar mais, suar mais, sangrar mais. Me apaixonei pela vida muito novo. Aos 10 anos a vida já era um presente para mim. Presente valioso e único. Como tudo que é valioso custa caro. No meu caso foi minha saúde. A vida que tanto amo em sua plenitude me cobrou uma fatura de mais de 20 anos, 28 anos para ser mais exato. No mês que fiz 10 anos de idade descobri que minha pressão arterial era algo fora do comum. Àquela época eu já tinha pressão 18x10. Eu era um menino de 10 anos num corpo de homem feito. 1,85m de altura e 110kg. Talvez essa escapada do crescimento normal me tenha presenteado com o que hoje conheço como HAC (hipertensão arterial crônica). A vida é um caminho feito de passo a passo, tijolo a tijolo. Uma linha de ponto a ponto. E na coleta destes pontos somos mais levados a pegar aqueles que estão mais dentro da curva, qualquer um que já montou um gráfico manualmente sabe do que estou falando. Pontos que não se moldam a nossa curva são descartados. Descartei este ponto desde o primeiro minuto que ele surgiu. No primeiro exame para equipe de natação a pressão me tirou do time. Não me apeguei a isso. Apenas não fui mais aos treinos. E apaguei isso da minha curva. O nadador não existia mais. A facilidade entre apegar e apagar era algo que se tornou fácil para mim. Dois anos antes o escoteiro deixou de existir não pelo mesmo motivo, mas pela mesma facilidade de usar tais ferramentas. Esta foi a primeira vez que me recordo de ter abandonado a luta para o refúgio. E este então foi o modus operandi que se seguiu por 28 anos. Até agora. Dia 30 de Abril de 2015 seria o dia que eu retornaria ao trabalho depois de 20 dias de férias bem merecidas, mas nem um pouco aproveitadas. Foi o meu sétimo período de férias desde que entrei na secretaria de saúde do DF. E já me via triste ao ter que voltar a uma realidade que não é boa e nem de perto correta. Me preparei com tudo que sempre levo para tornar o plantão o mínimo agradável e cumprível. O refeitório é local proibido para mim a mais de dois anos. A ausência de dieta para hipertensão e diabetes é algo que me fez correr para muito longe de lá. E o esforço físico de separar caixas de medicamentos e matérias também teve sua contribuição. O trabalho noturno em um hospital nada mais é do que a emergência que não pode ser ignorada. A perversão da falta de administração publica tornou o trabalho noturno em dinâmica semelhante ao diurno no local que cumpro minha carga horária. Em primeira análise o que se come e como se descansa no período de 12 horas não deveria ser tão influente no resultado final de sua saúde. Mas como já disse antes a vida uma linha de pontos. Apenas isso. E a reunião destes pontos nos últimos 4 anos, cobraram um preço que quase não pude pagar. Terminei de preparar minha refeição e roupas de cama limpas as 04hrs da manhã. Fui dormir. O que relato agora é o registro detalhado do que aconteceu na manha do dia 30/04/2015. Ao abrir meus olhos não consegui foco da visão, tentei apertar os olhos e não havia foco. Me sentei na cama sem conseguir ver nada. No instinto peguei o celular e tentei ver se havia algum recado. Foi quando vi uma tela completamente embaralhada, não havia uma palavra que pudesse ser lida. Foi quando eu identifiquei a dor, contínua e sem interrupção. Pontiaguda e insistente. Pensei ser apenas indigestão, me levantei tomei um comprimido para dor de cabeça e pensei dormirei novamente, isso deve consertar tudo. Acordei 3 horas depois com a mesma dor, tão viva quanto antes. O comprimido não fez a menor diferença esse foi um sinal claro que algo estava fora do normal. Peguei o aparelho de pressão, ao medir não consegui ler o medidor, fora de ordem como se estivesse em outro idioma. Foi ai que minha mente, ainda lúcida, me deu a certeza de que eu sofrera um AVC. Sou o filho único de pais idosos, tomo conta do que posso deles a anos. Eu não podia ser explosivo ou alarmante na minha reação. Esperei que acordassem. E avisei que estava com uma dor de cabeça muito forte. Senti que dormindo poderia me acalmar. Dormi por mais 4 horas e apanhei um taxi para o hospital. Ao passar pela triagem a pressão arterial estava 22x13, ganhei um pulseira amarela prioridade 2. O medico de plantão não pensou que eu tivesse algo nas minhas preocupações alem de um atestado. Depois que você lida com eles muito tempo as reações são clássicas e claras. Me mandaram para tomografia. Depois de uma breve discussão sobre minha incapacidade de ler ou não, respondi um questionário verbalmente e fiz o exame. A partir desse momento a correria foi notória. Me colocaram numa cama e me deram medicação. O sono comandou minhas reações mas não me impediu de ouvir o diagnóstico do medico de um AVCI(acidente vascular cerebral isquêmico) e que minha função renal estaria comprometida em parte. Depois disso uma sucessão de lapsos e clarões que me levaram a ser internado na UTI c leito 12 na sexta feira por volta das 19hrs e 30 min. Fui recuperar a lucidez no sábado a noite. Durante este período não compreendi uma palavra do que me foi dito ou perguntado. Dormi o que consegui por esse fato, não conseguia ler uma palavra. A única coisa que eu possuí foi minha mente, presa em si mesma. Me senti sozinho. Me senti preso. Me senti isolado e exposto das formas mais antagônicas imagináveis que uma mente doente e machucada pode fazer com você. E acredite se seu cérebro e a forma que ele vê o mundo não estão indo bem, você vai mal. Não poder falar e principalmente não compreender o que falam com você transforma o mundo em seu inimigo. Me foi dado um banho na primeira noite da UTI, e durante toda a duração dele eu tinha em mente dar uma surra no pobre técnico que apenas fazia seu trabalho. Mas naquele segundo eu me sentia como se o tal banho fosse um declaração de guerra por parte deles. O senso de equilíbrio não me permitia soltar a grade da cama e tudo rodava então adiei o ataque ate não correr risco de cair da cama. Algum tempo depois me deram alguma medicação intravenosa e minha mente adormeceu. Acordei na manha de sábado com uma dor de cabeça forte novamente. Mas já ouvia palavras e entendia frases. A coordenação motora nunca se foi então matar a fome não foi problema se a refeição estivesse ao alcance da mão. Quando se esta preso num lugar de corpo e mente a rotina do local entra na sua rotina biológica se funde com ela. Foram 6 dias de internação na UTI os 4 dias finais são uma espera constante de espera para próxima refeição. Depois da refeição a solidão faz sua mente se apegar nos fatos mais básicos da rotina a sua volta. Neste tempo fiquei ligado a uma bomba de infusão que injetou 5mg/ml de nitroprussiato de sódio por hora durante estas 144 horas. E cada parte da rotina do dia ficou gravada num esquema automático que se imprimiu na minha memória. A paciente que teve a cirurgia refeita e tinha seu horário de choro sagradamente entre 17 e 19 horas, depois dormia com a TV ligada (sim TV na UTI). Dona ********* que arrancou a sonda uretral 28 vezes na minha ultima contagem. E adorava cuspir o suco pra cima na hora do almoço. O paciente que não tinha mais rim e aguardava acho eu um transplante com uma pressão 28x14. E que para seu azar foi tomado como diabético e recebia cardápio diet como o meu todo dia, e todo dia reclamava o mesmo mantra “Eu não sou diabético!”. A linda moça grávida e em coma que teve o neném ainda em coma. Cada um destes foi parte do meu dia por quase uma semana. Cada um deles com sua medida. Cada um deles um ponto que de suas curvas foram marcados na minha. Tornaram-se parte dela. Eu já sabia a muito tempo que um filho único de pais idosos teria dois empregos na vida sem aposentadoria. Estes dois empregos ficaram a descoberto nessa pausa forçada a que fui obrigado. Eu já sabia que duas pessoas que não vivem no século XXI, mas estão nele, vão sofrer dores na pele. Eu já as sinto há anos. Foram estas que me adormeceram para que eu não cuidasse de minha saúde. E não valorizasse minha vida. Alguém que passa 28 anos sem ligar para própria saúde fugindo de qualquer marca que se aproximasse de alguma cuidado com ela, está anestesiado dentro de si mesmo. Precisei me deparar com um muro alto e enorme claramente não contornável. O tratamento funcionou. Pressão arterial controlada em 12x8 quando muito 13x9. Mas uma sensação de que a curva mudou de direção ficou clara. O peso do mundo deve pertencer ao próprio. Nosso papel, a missão de cada um de nós é viver bem. Sempre. A lição? Uma única: Cuide de seu coração espiritual e sua curva será mais suave. Os pontos serão perfeitos ou dentro da curva como devem ser. O ponto que mudou minha curva de direção foi no exame um ponto na tomografia. Um ponto apenas. E como todos eles. Definitivos.