A era da covardia

Cada dia que passa, mais tenho a certeza de que nasci numa época totalmente errada. Vivi minha juventude lá pelos idos dos anos 70, e naquele tempo, viver doía. Vivíamos literalmente sonhando com uma liberdade que a gente idealizava e cada um do seu jeito saía em busca da sua. Ou então se enclausurava em si mesmo, vítima de uma repressão que vinha não se sabe de onde, a gente só sabia que tudo era proibido, tudo era pecado, tudo era arriscado demais para viver plenamente. Aliás, viver plenamente nunca era permitido. Havia placas de limites muito bem fixadas na cabeça de cada um. Vivíamos sob a pressão de uma possível guerra atômica, que a qualquer hora poderia exterminar o planeta com um simples apertar de um botão controlado pelo acordo de paz firmado entre a Rússia e Estados Unidos, o que exigia que o mundo andasse pisando sobre ovos, para que nenhuma turbulência exigisse o comando do terrível telefone vermelho, senha declarada para o sinal de ataque. Essa guerra fria congelou o tempo e o desenvolvimento de muitos países por esse mundo afora. Foram muitos os jovens daquela época dizimados em guerras estúpidas, como a Guerra do Vietnan , que até hoje tem suas razões como um mistério para mim. Por causa de guerras de terror como essas, a maioria dos jovens artistas da minha época abraçaram a bandeira da paz. E a nossa música era triste. Havia guitarras nos palcos, mas elas não tinham esse som estridente de hoje: elas gemiam. Quem viveu naquela época e ouve as suas músicas, sente a nostalgia avançando no peito quando elas tocam, parecem um lamento, gemidos dessa dor que a gente não esquece. John Lennon foi um que levantou a bandeira da paz como tema de suas músicas. Ele e tantos outros que não aceitavam o sacrifício de tantos homens em nome de um patriotismo cujo objetivo era sempre a supremacia política, o jogo do poder, onde os poderosos por detrás de suas poltronas de veludo mandavam tantos jovens para as trincheiras, onde muitas vezes as famílias só recebiam de volta uma bandeira e uma medalha simbolizando heroísmo e bravura. Filmes como Hair, Nascido em 4 de Julho, contam um pouco dessas histórias sangrentas, que embora distantes de nossa realidade, também nos causavam dor. Não tínhamos televisão. Nem CDs, DVDs. muito menos computador. Éramos ligados ao mundo pelas notícias manipuladas dos jornais e manchetes de revistas ou através do rádio, nossa ponte com a arte através da música. Havia o cinema, mas a maioria dos filmes era censurada para que ficássemos alheios ao que acontecia no mundo do poder. Nada que o governo fizesse podia ser criticado, questionado ou cobrado, sob pena de sermos considerados comunistas ou subversivos, situações que podiam ser punidas com o exílio, com a tortura nos porões da ditadura e até mesmo com a morte, como aconteceu com tantos jovens brasileiros que ousaram levantar a voz para gritar por uma liberdade que poucos conheciam o sentido. Afinal, liberdade pra que, se cada um era livre dentro dos seus limites, cada qual com a consciência mais embutida do que a outra, entendendo que lei era lei e tinha mais era que serem obedecidas como regras impostas pelo regime da época, que só para recordar, baniu tantos direitos sociais através de um simples decreto, mordaça forte que calou um país inteiro da noite para o dia. Bastava andar na linha para sair ileso, era o que cada pai cauteloso ensinava para seu filho, e vivíamos assim, alheios ao retrocesso histórico que a política da época encomendou para dominar os filhos dessa mãe gentil... tão gentil que ficou submissa, passiva durante longos 29 anos em que vivemos conforme a vontade de outros, donos de nossa desconhecida liberdade. E por não conhecê-la, não aprendemos a conviver com ela, a fazer uso dela e hoje estamos sofrendo a inconseqüência de sua chegada intempestiva, com letreiros de que agora tudo é permitido. Nós não sabíamos como era ser feliz de verdade. Tínhamos limites demais. Nem ver o Elvis rebolando na televisão podíamos, porque era filmado só da cintura para cima. Todo apelo à sensualidade e ao erotismo era proibido, era pecado. A palavra era medida, pesada, queimada quando tinha apelos críticos. As fitas de cinema eram cortadas, os filmes mutilados para esconder cenas que julgavam em desacordo com a inteligência ou com a moral de nossa gente. E nesse tempo, eu cresci. Desaprendi um pouco de sorrir, senti a força da mordaça quando meus sentimentos falavam mais fortes do que eu naquilo que eu escrevia e me ensinaram a calar meus pensamentos. E isso doía. Cresci com essa dor. E hoje vejo essa juventude num mundo realmente autêntico, onde os sonhos não têm mais limites, onde todas as portas estão abertas para oportunidades que brotam todos os minutos, onde cada um tem seus direitos e deveres definidos e a liberdade tem o real significado da palavra, pois cada um pode fazer de sua vida o que quiser, desde que não prejudique a vida do outro. E são tantos que continuam escolhendo o caminho da dor, que se fazem escravos dos vícios e da violência, se condenando a crescer com o sofrimento, como nós crescemos nos anos 70. Só que nós não tínhamos escolha, fomos vítimas do tempo. E as vítimas de agora, de quem serão? Ah!... como eu queria ser jovem agora para abraçar esse mundo com o alcance dos meus sonhos. Viver ainda me dói. Porque a maioria daquilo que sonhei, eu não terei tempo, forças e nem motivação para fazer agora...

maria do rosario bessas

maria do rosario bessas
Enviado por maria do rosario bessas em 28/05/2015
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