ROTINA DA CAVERNA

O enrodilhado dos panos me trouxe as meninas. Cada bebezinha

veio num embrulho que eu caprichei: eram mantas macias,

com cheiro bom, do perfume raro que cada uma delas tinha. Enrolei-as em mim, depois de cada parto, no quente dos meus seios,

na minha carne descansada.

Veio a primeira, olhos negros fitos em mim, o choro estancado

apenas por me ver. Veio a segunda, chorinho manso, clarinha,

aninhou-se. Veio a terceira, rosa vermelha, pele aveludada, na

manta branca, uma princesa.

Eu me contentava em cozinhar para elas, cantarolar canções

inaudíveis, apenas murmuradas; para cada qual um som, uma poesia

diferente.

Minhas bebezinhas se fizeram mulheres e já não posso prendê-las

aos seios, tampouco calar-lhes as mágoas com cantigas

de ninar. Cada uma traz a dor indizível, de menina, de mulher,

porque todas as mulheres foram feitas para suportar as dores do

mundo, e sofrem por qualquer besteira. Um mar se derrama por

elas, ao menor descuido.

E me pego estupefata, as palavras fogem, e silêncio profundo

se interpõe entre os nós de nós quatro. Quatro mulheres que

se amam e se buscam no barulho da casa, onde também vive uma

gata.

Quatro mulheres mais uma: a velha avó, matrona da família,

e que descubro ser a menor de todas, a mais frágil, a criança que

sofreu muitas perdas, a menina despontando no canto dos olhos,

no jeito da boca, quando sorri.

Vou descobrindo entre um susto e outro, uma alegria e uma

dor, o quanto amo cada uma delas, as meninas e a velha avó. Um

amor que às vezes se expressa em horas eternas, quando ficamos

juntas, na concha-casa, sem querer arredar o pé porta afora.

Gatas de sofá, enroladas em nossos mistérios íntimos, pairamos imunes aos aplausos ou críticas, no entreato de cada manhã

e cada anoitecer.

Padeço de ser mulher, padeço de ser mãe, padeço de uma

alegria doída e mágica por cada uma das minhas filhas, geradas,

amadas, retidas no meu coração.

Padeço de ser filha e neta de grandes mulheres, gatas de sofá

como eu, mas também felinas de floresta, aguerridas lutadoras,

feras da tragédia cotidiana, dum palco sem plateia, no anonimato

dos dias, costurados com retalhos dos sonhos que permanecem.

Padeço de ser avó.

Rendo-me ao zelo permanente, e curvo-me à rotina da caverna:

este é meu rito e minha iniciação.

SERVIR COM ARTE - 2011

Eni Gonçalves
Enviado por Eni Gonçalves em 14/06/2015
Código do texto: T5276521
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