Canal Bambu

Canal Bambu

O pai e a mãe escutam "Casamento no Uruguai", o disco do Patesko Nunes, na radiola comprada na loja do Marcondes Machado. O aparelho de tevê também foi comprado lá. Um dia, no catecismo da Dona Zulma, no Grupo Novo, foram chamar o garoto: "Ele pode sair mais cedo?" A Dona Zulma deixou, bom aluno tinha regalias.

A mãe radiante: "Tem uma surpresa lá em casa." Era a tevê. Nunca houve coisa mais linda, móvel de imbuia, combinando com a radiola. Transmitia em preto e branco, mas parecia azul. Um azul sem comparação, que nunca mais existiu. Na tela, a propaganda do fogão Gardini, com Clausi Soares, ao vivo. Nunca houve mulher mais linda!

Mas a tevê dava mais tristeza que alegria. Vivia fora do ar. A TV Itacolomi, Canal 4, sempre na liderança, não parava na tela. Será que o pai era um daqueles que não pagou o TV Clube de Pitangui, que foi dissolvido por falta de pagamento? "É com pesar que tomamos tal atitude, assinado Marcondes Machado." Estava encerrado o projeto "TV Clube de Pitangui", em 12/12/1965.

A programação da Itacolomi começava ao meio-dia, parava à meia-noite. Simples assim: avisavam que iam parar, davam boa noite, entrava a imagem do indiozinho, depois "fervia". Era o que dizia a gente: "Ontem fui dormir tão tarde que a televisão já tava fervendo". O barulho era de fritura e a imagem parecia uma passeata de micróbios. É que tinha acabado a programação. Era a TV Itacolomi, Canal 4, sempre na liderança, Canal 4, Belo Horizonte, Minas Gerais, Edifício Acaiaca, último andar, Afonso Pena com Bahia.

Mas sempre havia o dia seguinte, tudo recomeçava ao meio-dia. Quem não queria rever as irmãs Clausi mais a Cleusa Soares, garotas-propaganda ao vivo, falando da Ingleza Levy, Dogali Magazin, Drogatel Araújo e Gurilândia? Quem não queria ver Rômulo Paes e coisas mais, falando de música, de carnaval? Quem não queria ver o Clássico das Multidões, Atlético e América no Independência, ou o "derby" Atlético e Cruzeiro. Ou Renascença e Sete de Setembro; Asas, de Lagoa Santa, contra o Democrata, de Sete Lagoas. Ou o clássico Me-Me, Meridional, de Conselheiro Lafaiete, contra o Metalusina, de Barão de Cocais. Quem não gostava de ver "Garrafa do Diabo", teatro ao vivo, à meia-noite, só aos domingos?

Mais tarde apareceram a TV Alterosa, a TV Belo Horizonte, TV Excelsior e outras e outras. Em casa, as crianças queriam ver Viagem Submarina, os adultos o Repórter Esso, os adolescentes adoravam futebol. E Marcondes era o salvador da Pátria. Tanto era que, mesmo estando em Belo Horizonte, os meninos imaginavam a Rural subir a Cruz do Monte pra consertar a torre de tevê. Gente, ele foi ao Mineirão, explicava o pai, hoje tem Atlético e Cruzeiro, gente, hoje ele não vai subir a serra pra arrumar a tevê.

Quando não havia mais esperança, o pai subia no telhado, ia girando o bambu que sustentava a antena. Vira pra Serra dos Ferreira? Lá pega. Um dos filhos no quintal, olhando o pai no telhado, outro na janela, o terceiro na frente da tevê. "Melhorou?", gritava o pai. O do quintal: "melhorou? O da janela para o da frente da tevê repetia a mesma coisa e o da tevê, sempre com a voz desanimada a dizer não, não, piorou, agora melhorou, é aí, ih, piorou de novo, sumiu, que nem na brincadeira de telefone sem fio, de chicotinho queimado, fubá torrado, tá frio, tá quente, esfriou, gelou, tá quente demais, pelando, pelando, ih, esfriou ... Polo Norte, Polo Sul. A imagem ia e vinha, mas nada de quietar. Hoje não dá pra ver o Brasa 4, do Dirceu Pereira. Vai tocar um povo de Pitangui, que pena!!!.

Marcondes tinha sempre uma novidade, uma carta na manga, um coelho na cartola. Na época da Barraquinha de Nossa Senhora do Pilar, montada no meio da Praça da Câmara, Marcondes punha no ar a Rádio Emissora Ptanguiense, a Caçula das Emissoras Brasileiras. Quinze dias no ar, todo ano.

A música da Barraquinha subia até a lua-cheia, aos astros e às estrelas, depois descia pela Cruz do Monte, ia à Praça da Matriz, descia a Rua do Nascente, subia a Paciência, entrava pelo coração do menino e o entregava em casa, são e salvo, no Beco dos Canudos. Em casa, antes de dormir, podia prolongar as emoções sintonizando a Rádio Emissora Pitanguiense, escutando: "Nosso céu onde estrelas cantavam, de repente ficou mudo, e, no encanto de tudo, quem sou eu, quem é você?" Quem era a menina cantora que vinha de Belo Horizonte, na caravana de Ubaldino Guimarães, junto com o coral "Os Cariúnas"? Era a voz mais linda do mundo.

No campo do CAP, Marcondes não tem sossego pra ver o jogo. Alguém vem reclamar que falta água no Jatobá e na Olaria, ver se ele pode resolver. Afinal de contas, um vereador, apesar de não ganhar nada pra isso, tem uma responsabilidade. No campo de terra, o CAP vai perdendo para o CAP de Pompéu, o Iraci Severino parece que não vai aguentar o segundo tempo. O Carlos Cuié também não rende muito, está com o joelho inchado. O Chiquinho Alfaiate tem que fazer substituição, não dá pra perder em casa! Ainda mais pra esses pompeanos!!!

Os primeiros telefones em Pitangui foi ele que instalou. "Pra que telefone, Marcondes? Pitangui é um cuxixó, você sobe no telhado do Banco Hipotecário e fala com qualquer um na cidade", alguém disse. Mas ele não escutou, queria os telefones na cidade. E conseguiu. Em pouco tempo, muita gente sabia a rotina. Levantava o fone do gancho, aguardava a telefonista: "Telefonista!". E você dizia o número: " meia, quatro, meia". Em seguida, já estava falando em casa.

Acabou a música da radiola. Acabou a barraquinha de Nossa Senhora do Pilar. Pitangui cresceu, tem rádio, tem telefone fixo e celular. O vereador passou a ganhar. O futebol de Pitangui já não é o mesmo,. Tudo passou, tudo mudou. O que não pode passar nem mudar é a gratidão por um pioneiro, um visionário chamado Marcondes Machado.

(Este croniconto (mistura de crônica e conto) é dedicado à memória de um pitanguiense notável, pouco conhecido pelas gerações atuais. Especializado em eletrônica, Marcondes Machado foi comerciante, vereador honorário (sem salário) e diretor do Clube Atlético Pitanguiense. Foi ele quem trouxe tevê, rádio e telefone para Pitangui, numa época em que tudo era difícil, a começar por ter de encarar as resistências às novidades, características próprias das cidades interioranas das décadas de 50 e 60 do Sec. XX. )

(Publicado originalmente no blog " daquidepitangui.blogspot.com.br

William Santiago
Enviado por William Santiago em 15/06/2015
Reeditado em 24/09/2019
Código do texto: T5278084
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