Botijas


Eu adoro lendas, estórias, causos. Sou fã de uma boa prosa regada a goles de café em grandes xícaras, sentada em tamboretes, cadeiras de balanço ou terra batida.
Não aprecio o debate filosófico embora dele não fuja quando convidada. Os estudantes de Filosofia só faltam vestir túnicas e fazer do Campus uma ágora. Intelectuais imageticamente construídos. Ai que preguiça. Quero lendas de reis, de princesas, donzelas, estórias antigas e contos fantásticos.
Pode faltar água no Nordeste mas estórias sempre haverão. E uma das lendas mais bonitas do Sertão é a das botijas.
O que eu mais gosto nas botijas é serem encantadas. Dizem os mais velhos que os povos mais velhos que eles, nossos ancestrais, traziam riquezas do Velho Mundo, ouro, prata, jóias e, ao ver que nessas terras solitárias não havia por que nem para quem ostentar as posses, enterravam-nas em lugares remotos. Então, em vez de fazer como Nosso Senhor ordenou e dividir as riquezas entre os pobres, esqueciam-nas ou morriam de repente, deixando-as por séculos e séculos no esconderijo aonde, fatalmente, voltavam virados almas penadas à procura de alguém que fosse merecedor de possuir o tesouro.
É o sonho de todo sertanejo preguiçoso e metido a valente: arrancar uma botija. Pois que não é fácil a tarefa. Conheço relatos de homens corajosos que, durante o processo do arrancamento, viram tanta coisa feia, tanta assombração lhes apareceu que tiveram medo e desistiram. Porque as outras almas, as que não querem que suas iguais sigam para a luz após livrar-se do castigo, se metamorfoseiam nas marmotas mais horríveis e inimagináveis para espantar o escolhido. Dizem que o segredo é ignorá-las, enfiar na cabeça que é tudo ilusão e que elas não podem fazer nenhum mal além de assustar. Mas quem mantém o juízo, atormentado horas seguidas por seres do outro mundo? Eu não.
Geralmente as botijas se escondem sob casarões abandonados. Não vou longe; uma tia minha, pessoa íntegra, devota do meu divino São José, senhora digna de respeito e consideração, contou-me uma vez que, quando era adolescente, todas as manhãs para ir ao roçado tinha que passar às margens de um córrego. Certo dia uma velhinha de olhos cor de água aparecera para ela e continuou a aparecer nos dias seguintes, a mostrar-lhe o local onde havia uma botija encantada. A velhinha não dizia nada, apontava para o meio do córrego com seus olhos claros e a tia, como a maioria das mulheres da família, era dada a visões e enxergava, de fato, uma boca de pote a reluzir sob as águas transparentes do riacho.
Muito tempo a velhinha quis dar a botija à tia e livrar-se do fogo eterno. Mas não houve jeito. Desistiu ou foi à procura de outro que por riqueza de alma penada se interessasse. O fato é que um dia, como de costume, a tia passou à margem do córrego e nada mais viu além de pedrinhas comuns, dessas que há nos riachos, lisas, achatadas ou redondas
Outro caso foi de uma jovem senhora, muito necessitada, que estava à espera do seu primeiro filho. Naquele tempo não se sabia o que era gravidez de risco além dos sintomas dos quais a mulher se queixasse e essa não era dada a queixumes. Sofria em silêncio. Não dizia um ai. Em meio a fortes dores, a sertaneja sentava-se no batente ao final da tarde para ver chegar o marido. Um dia, quando a sombra da noite se estendia sobre o terreiro de casa, acercou-se dela uma senhora muito altiva e bem-vestida a dizer-lhe, "Filha, tu precisarás de dinheiro em breve. Vê, ao pé da tua cama, do lado esquerdo da cabeceira, há uma caixinha com uns contos de réis enterrada. Usa esse dinheiro para cuidar da tua saúde."
A jovem, pessoa muito religiosa, viu nessa aparição obra do demônio a querer roubar-lhe a alma e, quanto mais a mulher aparecia a lhe rogar que fosse desenterrar a caixa, mais a moça pedia que Nossa Senhora do Desterro a levasse para longe de si.
Dias depois a jovem entrou em trabalho de parto. mas era chegada a sua hora e da nossa hora não escapamos a menos que decisões superiores determinem. Enquanto sentia-se a morrer, a jovem contou ao marido sobre a aparição e a caixinha. E faleceu. Muitas horas depois, quando a ajuda chegou e o médico examinou os corpos, asseverou que se um carro tivesse levado a moça à cidade, ao menos a criança poderia ter escapado. Mas o casal não tinha dinheiro para alugar um carro e deixá-lo a postos e muito menos ela dissera que de fortes dores sofria.
O marido, ao lembrar-se da estória que a esposa lhe contara, levado pela curiosidade encontrou a caixinha mas, no lugar dos contos de réis, apenas terra havia. Porque o encanto das botijas se quebra se alguém, além do que foi escolhido para possui-la, a encontra.
Penso que assim, como uma botija, é o meu coração. Alguns já tentaram possui-lo mas desistiram, sabe Deus que marmotas andaram a assombrá-los. Mas o escolhido, o verdadeiro dono do meu coração, há de chegar e dele apossar-se, tesouro escondido, com todos os seus encantos e mistérios.