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A cama do Pires
 
(Reflexões sobre a leitura de “A Capital da Solidão” de Roberto Pompeu de Toledo)
 
A leitura de “A Capital da Solidão” é um gostoso exercício cultural. O livro nos pinta um interessante e delicioso quadro de como se formou a cidade de São Paulo, dentro do contexto do nosso país. Muita coisa pode se aprender desta leitura. Um dos episódios que me chamou bastante a atenção foi a história da cama de Gonçalo Pires, um carpinteiro e construtor. Segundo o relato do jornalista e autor do livro, Roberto Pompeu de Toledo, ele era o único dono de uma cama em toda região de São Paulo. Nossa cidade, agora colossal e de fazer inveja pela sua modernidade e riqueza, era por volta do ano 1620 – quando ocorreu esse episódio – bastante atrasada em relação às outras do Brasil. As litorâneas, como o Rio, tentavam imitar o estilo europeu e gozavam de um conforto relativo que se assemelhava às capitais europeias. Já a nossa estava muito mais próxima da categoria de uma aldeia indígena do que de uma metrópole. E isso era em tudo. Comíamos o que comiam os índios, falávamos mais a língua indígena do que o português e até as “esposas” eram indígenas: nada de mulher europeia por aqui. Não que elas fossem melhores do que as nossas índias. Dormia-se no chão, em catres e em “redes de carijós”, como se falava na época. E não pense que isso foi só então, que faz muito tempo. A cama só substituiu a rede no século XIX, ainda segundo o autor do livro. Pois bem, isso explicado, podemos entender melhor o que aconteceu a seguir. Amâncio Rebelo Coelho, “ouvidor-geral” da Repartição do Sul (Rio, Espírito Santo e São Paulo), uma espécie de enviado do governador-geral, e portanto autoridade oficial diretamente ligada à coroa portuguesa, precisava vir para a cidade para fazer sua ronda, ou sua fiscalização. Tão importante figura, com seus ossos moídos pela subida da serra do Mar – naquela época não havia nossas maravilhosas rodovias (e você ainda reclama do pedágio) – precisava de um móvel digno para descansar. Imediatamente pensaram na cama do Gonçalo Pires, proprietário exclusivo de tão importante bem. Mas o “empresário” não queria saber de conversa. Nem pensar em ceder a dita cuja. A Câmara não teve dúvidas, tomou a óbvia decisão: o móvel iria ser apreendido a bem do serviço público, entendendo-se por isso, o conforto do ilustre visitante. Uma força-tarefa foi enviada à casa do teimoso proprietário e não só a cama, como também o travesseiro e o seu lençol foram levados.
Depois da inspeção, o “ouvidor-geral” voltou para seus reais deveres e deixou para trás a provinciana São Paulo. A Câmara tratou de devolver o precioso móvel para seu legítimo dono. Este, ofendido e teimoso, recusou-se a receber de volta o item confiscado alegando estar danificado. Obviamente queria tirar alguma vantagem da situação. Onde se viu tal ato de vandalismo e abuso de poder por parte do governo? As autoridades decidiram chamar peritos que decidiram que a cama estava em bom estado e que a única impropriedade era a sujeira no lençol, que, então, foi lavado. Decidiram também pagar um aluguel pelo uso do bem para ver se o cidadão se acalmava e aceitava receber a mercadoria de volta. Que nada. Ele estava pensando em uma quantia muito, muito maior, de dinheiro, pelo precioso empréstimo forçado que tinha feito. A disputa demorou pelo menos mais sete anos e, infelizmente, os historiadores não descobriram o que aconteceu depois.
Temos aí, porém, um bom preâmbulo do que viria a ser nossa vida política e administrativa. O governo tentando tirar tudo à força do indivíduo e esse tentando tirar tudo do estado. E é óbvio, a burocracia. Perícia, discussões que não levam a nada, disputas que se prolongam e o ridículo sendo o tópico principal de tudo, ficando as coisas importantes completamente de lado.
 
Uma premonição.
 
ooooooOOO0OOOooooo
 
A crônica acima não faz parte do livro abaixo
 
Essa vida da gente
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Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 24/06/2015
Reeditado em 27/06/2015
Código do texto: T5288717
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