Uma do Convento
 
Outro assunto que dava um livro é o tempo que passei no convento mas cadê hora vaga para escrever, a gente trabalha para sustentar o vício da literatura porque dela não se vive mais. Não financeiramente.

Olhando o Facebook agora vi uma foto de uma bacia de piabas bem torradinhas e crocantes, no ponto pra tirar o gosto da cana. Aí me alembrei da freira que vamos chamar de Felícia.
A Irmã Felícia não gostava de mim nem fazia empenho de disfarçar. Não a culpo. Era idosa, gaúcha, acostumada ao trabalho pesado e eu, ao contrário dela, uma fina preguiçosa, além de atrevida e maria-batina. 

Certo dia a Irmã Felícia ganhou um saco de piabas que um amigo seu pescara em Santa Helena. Quando foi pela hora do almoço ela chegou com os peixinhos e as noviças combinaram de tratar as escamosas.
Acontece que depois do almoço eu dava o maior valor tirar uma soneca. Deixava as outras nos trabalhos de limpeza e fazia o meu "retiro".
Adormeci ouvindo as risadas alegres das meninas no trabalho de limpar os peixinhos.
Pelas quatro horas acordei, morrendo de fome. A boca salivando pelas piabas mas para beber só tinha licor de genipapo (que as freiras mesmas faziam) e eu detesto.
Então fiquei zanzando pelo pátio, com uma Bíblia nas mãos, fingindo concentrada leitura. Hum! tava era pensando no meu Padre que ficara aqui em Fortaleza, mesmo! Gente, uma lindeza de homem.Trocávamos cartas, aliás. Não as tenho porque quando me zango com uma pessoa toco fogo em tudo que ela me deu. Mas na época eu estava morta de apaixonada. Foi dele o meu primeiro beijo e também segundo, o terceiro, o quarto...era amor pra mais de metro.

O Tiago, meu melhor amigo, mandara para mim duas fitas cassete que eu ouvia no gravadorzinho da Irmã Felícia, uma do álbum "Per Amore" da Zizi Possi e outra do Andrea Bocelli. Oh, rapaz. Pra que. O meu amado era italiano também. Escutava-as horas e horas, ardendo de paixão.

Voltemos às piabas; às 18 horas rezamos o terço, partilhamos o evangelho do dia e fomos jantar. Alegria da minha vida. Sentei-me à mesa, empunhei a colher e a colega de claustro trouxe o de-comer. Quando destampou a panela, para minha surpresa, havia sopa lá dentro.
Fiquei a cara da decepção. Perguntei pelas piabas e a Irmã Felícia disse que só ia comer quem tivesse ajudado a tratar.
Então eu, Srta. Vera respondona, perguntei se no dia da partilha dos peixes só Jesus tinha comido por ter sido ele o autor do milagre.

E fui para o quarto aborrecida, sem jantar, ouvir Andrea Bocelli e me alimentar de amor.
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 16/07/2015
Reeditado em 16/07/2015
Código do texto: T5312949
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