Uma cearense fina a aventurar-se pela bela Lisboa
 
Um amigo meu, dia desses, fez uma viagem ao Peru e, ao regressar, escreveu um livro narrando tudo. Eu, é claro, fiquei morta de inveja e comentei com ele que não havia escrito nada da minha estadia em Lisboa. Ele me incentivou a escrever mas para mim foi tudo normal na viagem. Ou quase. Porque normal não é palavra que se empregue à minha pessoa. Não dá um romance mas uma boa crônica sai, com certeza.
 
Apois. Tudo começou com um par de chifres. Eu trabalhava em uma empresa e arrumei um namorado por lá. O grandessíssimo filho de uma chocadeira era separado da mulher e não queria vê-la nem pintada de ouro e eu, besta, caí na lábia dele. Começamos a namorar, me apaixonei perdidamente, pensava até em casar. Eu pensava, porque ele tinha lá suas escondidices.
Depois de um ano me namorando ele decidiu-se a voltar para a sujeita que, aliás, o tinha posto para fora de casa com três pés. Eu fiquei muito mas muito mal. Chorei, me embebedei, implorei que ele voltasse para mim. Em vão. Como o mestre Buarque de Holanda eu "quis morrer de ciúme, quase enlouqueci." Tempos depois do luto veio o ódio e eu o matei em um conto mas antes, para o bem de todos, fui demitida.
 
Quando me vi sem namorado, sem emprego e com uns trocados no bolso, eu quis pagar minhas contas. O anjo da guarda apoiou cem por cento; caloteiros não entram no Reino dos Céus mas o diabinho, essa criatura que pensa antes de nós e tem por vezes excelentes idéias, soprou ao meu ouvido "deixa de ser besta, bicha besta, pega esse dinheiro e vai conhecer Lisboa!" Resultado: eu gostei, o anjo gostou e Nosso Senhor abençoou. Há tempos eu nutria esse desejo, até passaporte já tinha tirado.

Tratei então de tramar a viagem. Parcelei as passagens, comprei uns euros e a Vanda me emprestou o international card dela. Os dias eram interminavelmente felizes. Reservei hostel, contratei o seguro saúde, li tudo a respeito de Lisboa na internet.
Dentre as muitas coisas que eu li havia as histórias do povo que tinha sido barrado pela Polícia da Imigração, alguns inclusive deportados porém não me deixei abater. Fiz a mala, enfeitei-a toda com fitas coloridas (a Vanda mangava dizendo que parecia um jumento de cigano) e chinelei, quer dizer, avoei. De TAP que eu sou moça fina, foi subir na aeronave aqui no Santos Dumont e descer no aeroporto de Portela.
Pois pois; a matutagem começou desde a hora em que entrei no avião, fui me sentar em um lugar que não era o meu e o comissário de bordo me convidou a ir para onde o meu bilhete indicava. Gente, ô homem lindo e simpático. Aliás, só tinha gente bonita na tripulação, as aeromoças pareciam modelos. A tecnologia, armaria, de primeiro mundo. Mas cadê que eu aproveitei. Agarrei no sono. Fui acordar pela meia-noite com uma loura tipo deusa a perguntar-me se eu desejava jantar. "Lógico, minha filha." Aí ela trouxe uma comidinha bem gostosinha numas vasilhinhas bonitinhas e eu abarquei. Comi que lambi o prato e depois, toca a dormir de novo. Acordei no dia seguinte, toda escambichada, faltando poucas horas para a aterrisagem.
Mais comidinha, na medida exata de ficar alegre. Sim, porque aqui no Ceará a gente come chega fica triste. Uma banda de queijo só dá para almoço e janta, e é só se esconder para os meninos do bucho quebrado não comerem tudo de uma vez.
Eu só faltei levar uma lata d'água pra me assear no avião. Não foi preciso, ai que finesse, havia todos os itens de higiene pessoal nas "casas de banho". Como eu sou fina não peguei nada de lembrança. Um amigo tinha me sugerido roubar duas mantas, uma pra mim outra pra ele. Nunca na galáxia.

Quando aterrisamos em solo lusitano eu tive logo medo de a imigração implicar comigo. Peguei meu jumento de cigano, fiz cara de boa menina e apresentei o passaporte, que o seu polícia carimbou e me sorriu as boas-vindas.
Aí, mais relaxada, eu fui apreciar aquela belezura de aeroporto. Os aviões da TAP são invocados, cada aeronave tem o nome de uma personagem histórica portuguesa. Eu voei no Fernão de Magalhães. Um luxo.
A minha amiga brasileira já estava à minha espera e descemos ao "metro". Morri de medo. Foi uma vez que ficou por caçula, vai que eu pegava um bicho daquele sozinha e, distraída, ia parar em Espanha! Armaria.
 
Foi uma emoção muito profunda sair do metro e ter a minha primeira visão de Lisboa. Pegamos o "eléctrico" 28, outro sonho meu, e fomos para o hostel.
Chegando lá eu quis logo saber das comidas; quanto era, o que era de graça, tudo. O recepcionista me disse que o "pequeno almoço" estava incluído na diária, e eu "como assim, pequeno almoço?" A minha amiga esclareceu que pequeno almoço era a merenda deles. Ah, tá. Fui para o meu quarto e dormi que só gato em bica mas antes passei outra vergonha; não sabia regular a temperatura da água. Tomei banho gelado, trincando os dentes para não gritar. Vocês sabem; sou fina.
Sim, antes disso fomos à TIM de lá comprar um chip pré-pago. A moça passou o cartão e pediu que eu digitasse o pin. Cadê que eu sabia o que diabo era pin. Paguei em espécie, só depois vim me tocar que o tal do pin era a senha do cartão.
Passei a semana como em um sonho. O 28 era o meu xodó, vivia tirando fotos dele. Às vezes os carros passavam na frente e eu gritava "sai do mêi, carniça!" E caía na risada, sozinha. Subi as sete colinas de Lisboa, andei de eléctrico, de autocarro, naveguei no Tejo, palmilhei Alfama, fui ao Castelo, a Belém, ao Barreiro, ao Museu e a todos os miradouros, sempre guiada via Facebook pelas minhas amigas e a flor, morta de rica dentro do meu casaco de 160 euros.
 
O casaco foi uma comédia à parte. Antes da viagem a minha amiga tinha me dito que não estava frio, ficasse tranquila. E eu fiz a mala com os meus vestidinhos de renda, shorts, regatas.
Oh, rapaz. Pra que. No outro dia, quando eu apontei o focinho no terraço, o vento me deu uma facada. Pense num vento frio. Fazia sol mas era mesmo que nada. Corri feito uma ratazana molhada e emburaquei na primeira loja de casacos que encontrei.
Quando a minha amiga me viu encasacada, disse que eu podia ter comprado um igual pela metade da metade do preço e para acabar de ajeitar um padre amigo meu ainda me disse que podia inclusive ter descolado um de graça na paróquia dele. Eu fiquei muito indignada. Mas não devolvi a peça; sou fina.
No quesito comida eu fiquei com medo de os pratos serem reimosos ou muito caros, então só pedia salada. De resto, me entupia de sanduíche.
E tinha as tal das entradas; antes do de-comer chegar o povo servia uns pães, queijos, azeitonas. E eu só estranhando, não tinha pedido pão! Nem tocava, podia sair mais caro.
 
Povo de minh'alma, pense num lugar lindo. Tirei zilhões de fotos. Gente bonita, ruas bonitas, estátuas bonitas, até as pichações são bonitas.
De todas as emoções que vivi, quatro se destacam: a primeira visão de Lisboa, rever a flor, dessa vez em seu habitat, o presente que ela me deu e a Casa Fernando Pessoa.
Ai, pessoas, o Pessoa. Fui lá duas vezes. Na primeira eu mexi em tudo, abri as gavetas dele, buli nos papéis, nos sapatos, me deitei em sua cama, olhei embaixo dela. Foi glorioso. De noite peguei e postei tudo no Facebook.
Na segunda visita, assim que pus o pé na soleira a recepcionista disse logo: "lembro-me de si."
"Eita pau", pensei, "eles viram as fotos da minha malinagem, vão me expulsar". Aí pra disfarçar eu perguntei "se lembra de bem ou de mal?" Ela respondeu "de bem, obviament' " e eu dei um suspiro de alívio. E me comportei.
 
Outra cousa boa: homem. Benzadeus. Era tanto homem bonito que eu ficava tonta. Um deles se escorou na minha cadeira, conversando com outro lindo, aquele relógio masculino no braço e o perfume bom no ar, chega eu vi o mundo rodando. Ôs bicho bonito. Se eu tivesse ficado por lá tava era passando bem agora, por um daqueles eu queimava o Chico bem ligeirinho.
Mas entonces a semana acabou e eu quis voltar devido a negócios de flor. Chorei na despedida, agarrada aos lindos gajos do hostel, prometi voltar, cheirei mais um pouquinho o cangote deles.
Na hora do embarque, ao subir, perguntei ao moço do staff o nome da aeronave. Ele não entendeu a minha pergunta e um cabra pulou bem acolá: "o nome é Cid Gomes!" Égua, um cearense. Demos risada e eu disse que queria descer, tinha medo de o avião cair como o ex-ministro caíra naquela semana.
No entanto devo confessar que eu voltei foi porque senti saudade daqui, do forró, do baião de dois, dos achadeiros de graça do povo daqui de casa. Mas não descarto a ideia de um dia me mudar para lá em definitivo. Ai! Lisboa, donzela debruçada sobre as águas. Que saudade que eu tenho de tu.
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 20/07/2015
Reeditado em 21/07/2015
Código do texto: T5317853
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