Maria-Mei-Quilo
 
Muita coisa que eu vejo na internet me recorda a infância. Hoje vi uma notícia de que na França o povo inventou uma moda de comprar "a granel". Os franceses levam a vasilha e compram os itens dos quais precisam, dispensando assim as embalagens de fábrica. Oh, rapaz. Pra que. Voltei direto aos meus oito anos.

Lá em casa a gente sempre foi pobre. Não sobrevivíamos, escapávamos. O pai, carreteiro, só tinha dinheiro no dia que aparecia uma carreta para descarregar, fosse de arroz, feijão, algodão. Dinheiro não que dinheiro tem vergonha; uns trocados. E nessa ocupação o Zezão carreteiro sustentou mulher, oito filhos e um neto. Tempo bom era da "safra", o pai trabalhava mais e tinha um pouco mais para comprar nossas roupas, calçados, brinquedos. Tenho um orgulho arretado do meu pai, pense!

Mas antigamente, vocês sabem, eu queria ser rica. Achava muito ruim quando a mãe me mandava comprar meio quilo de arroz, de feijão, um copo de óleo. Sim, comprávamos óleo de cozinha a granel. O bodegueiro furava a lata, a gente levava o copo e ele despejava conforme podia-se pagar.
Muitas vezes, quando o Thiago era bebê, ia eu ou a Vanda pedir um copo de leite na vizinhança mode a mãe fazer o mingau dele. Hoje, graças a Deus, existem as políticas sociais que auxiliam as mães pobres na criação dos filhos. Existir gente sem-vergonha que utiliza indevidamente o benefício não tira o seu mérito que, aliás, é o sonho do meu querido Betinho realizado. É muito fácil doutor da capital abrir a boca e dizer que o governo "dá esmola". Quero ver, ou melhor, não quero ver esse cabra no meio duma seca do Sertão, sem ter o que plantar, o que comer, vendo a família passar fome. Meu coração fica feliz em pensar que não existe mais retirantes, que crianças não morrem mais de fome no meu Sertão e o povo começa a se conscientizar de que a seca é um fenômeno político antes que natural. Aos homens de gravata interessa ver o sertanejo com fome, o gado morrendo e a terra rachando, assim fica fácil comprar votos, desviar recursos públicos superfaturando obras que ficam pela metade, enfim, essas coisas nojentas nas quais não gosto nem de pensar.
Lá no interior ainda é assim, uma lindeza, há os armazéns e as bodegas, as sacas de mantimentos ficam expostas, a gente escolhe a quantidade e o bodegueiro pesa naquelas lindas, antiqüíssimas balanças que têm uns pesos invocados. Nunca entendi a lógica daquilo.
Apois. De manhã o pai comprava o arroz e o feijão do almoço e de tarde eu ia comprar o meio quilo de arroz mode a mãe fazer o baião da janta.
Acontece que havia um certo bodegueiro no Açude da Comissão, achador de graça e botador de apelido, a fuça era ver um rato. Ô bicho feio. Toda vez que ele me avistava dobrando a esquina no rumo da bodega, exclamava divertido: "lá se vem a maria-mei-quilo!"
Oh, rapaz. Eu tinha muito ódio. E era o jeito comprar lá que o desgraçado era barateiro.

Ao contrário do que o Compadre Dartagnan supõe eu não sou elitista, chique para mim é andar a pé pelas ruas de Boa Viagem, entrar na bodega e comprar o meio quilo de farinha e os poucos ovos para fazer a farofa. Ou aqui mesmo, em Fortaleza, passear pelo centro de havaianas, com o meu vestido mais velho, os pedintes sem se dignarem a me dirigir a palavra por me confundirem com um deles.
 
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 22/07/2015
Reeditado em 22/07/2015
Código do texto: T5320022
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