Ser motorista de ônibus

Houve um tempo em que eu tive sonhos, talvez sonhos pequenos, mas ainda sonhos. Depois a gente cresce, a vida toma um caminho diferente e a gente nunca mais se lembra deles. E um dos meus sonhos era o de ser motorista de ônibus. Claro, se pudesse eu também teria sido jogador de futebol, mas o meu sonho mesmo, palpável e possível de acontecer, era muito mais humilde. Não que fosse pouca coisa, dirigir um ônibus. Pelo contrário, eu não podia pensar em um jeito melhor de passar a vida. E não é que eu quisesse ser motorista daqueles ônibus grandões, com dois andares, com direito a cama, frigobar e cascata com filhote de jacaré. Não, eu não queria dirigir um ônibus de turismo: queria dirigir um daqueles ônibus triviais que fazem o transporte urbano das nossas cidades, aqueles ônibus que, no interior, ainda são chamados de “lotação”.

Esse sonho tinha razão de ser, pois na rua em que eu morava havia três motoristas de ônibus, e um deles era o pai do meu melhor amigo. Eu os via chegar e estacionar todos os dias e ficava encantado com a possibilidade de comandar uma máquina daquelas. O curioso é que, até então, eu nunca havia entrado em um ônibus. Bolas, com sete anos de idade não há muitos lugares em que você precise ir. Eu só saía de casa para ir à escola, de carro. Mas eu devo ter enchido tanto os meus pais com essa história de andar de ônibus que um dia eles decidiram me levar ao centro de ônibus. A gente nem tinha nada para fazer no centro, a ideia era só ir até uma lanchonete, comer um pedaço de bolo de bolacha e voltar – o fundamental era que eu andasse de ônibus.

Assim foi que, pela primeira vez, eu tive as extraordinárias experiências de passar pela catraca e puxar a cordinha do ônibus. Minhas emoções só podiam ser comparadas às de quem vê o mar pela primeira vez. Saí desse acontecimento ainda mais firme no meu propósito de me tornar um motorista. As brincadeiras em que eu me imaginava dirigindo se tornaram mais qualificadas, pois eu já tinha alguma experiência nessa coisa de transportar pessoas daqui para lá.

Com meu amigo, abençoado por ter um motorista em casa, transformávamos em ônibus alguns pedaços de madeira pequenos e compridos. Desenhávamos a caneta todos os detalhes do ônibus original – conhecíamos todos eles, afinal. O itinerário, as lâmpadas, o bagageiro, o motor, tudo isso copiávamos. Às vezes pintávamos com giz de cera amarelo. Éramos bastante detalhistas. Cada ônibus da cidade teve um correspondente em pedaço de madeira na minha vizinhança. E fazíamos na terra as estradas por onde andávamos com eles. Havia, naturalmente, um terminal de passageiros, onde todos eles se concentravam. A cada meio metro assinalávamos um ponto de ônibus, onde parávamos e os passageiros embarcavam. Deus é testemunha que, em todo esse tempo, jamais um passageiro reclamou do meu serviço.

Mas veio uma época em que as coisas começaram a mudar, o pai do meu amigo trocou de emprego, um dos outros motoristas da rua se mudou e, o pior de tudo, a gente cresceu. De modo que, aos poucos, fui me esquecendo desse sonho, e hoje ele se tornou tão esquecido que eu não dirijo nem carro. Em compensação, ando de ônibus todos os dias.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 27/07/2015
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