Casamento de Pobre

Recebi outro dia uma mensagem por e-mail chamada “Coisas de Pobre”. Era uma longa relação de 84 itens, cada qual mostrando uma situação onde o pobre se revela, colocada ironicamente. Como exemplos, eis algumas “coisas de pobre” (transcritas literalmente):

“Usar terno no fim de semana! – Ou é pobre ou é crente... Cruz credo! Rico só usa terno no escritório ou em casamento”.

“Festa no McDonald’s! – Só pobre acha que festa naquela porcaria de lanchonete é chique. O cara comemora o aniversário do filho no McDonald’s e fica controlando o que a pirralhada come e depois soma os presentes recebidos para ver se a festa não deu prejuízo”.

“Cama beliche! – Móvel típico dos pobres, que se reproduzem feito ratos e têm que dormir em algum lugar, uns em cima dos outros. Rico tem no máximo dois filhos. E cada um tem seu quarto”.

“Ir a festa de casamento de calça jeans! – Pronto, você acabou de cometer um pecado mortal para quem não quer ser brega, nem poooobre! Se no convite está dizendo: Passeio Completo, ou Esporte Fino, seja educado e pergunte às pessoas o que significam essas palavras...”.

“Fila (de qualquer tipo)! – Nada melhor do que uma boa fila para jogar na sua cara que você é pobre...”.

“Paquerar no ônibus! – Quem é rico paquera do carro! Além do mais, você acha que a gata que tá no banco do lado vai dar mole pra você? Um pé-rapado que só anda de busão?”.

E por aí vai, mais ou menos nessa toada. Acho que deu para perceber que a lista quer passar a idéia de que pobreza é mais um estado de espírito do que um estado de penúria material. Fiquei um pouco indignado por ser uma lista elitista e restritiva além da conta, e por retratar situações comuns para a maior parte das pessoas (quem é que nunca ficou ou tem que ficar numa fila?). Dei uma resposta malcriada, colocando que achara a lista preconceituosa e de espírito conservador, uma vez que determinava comportamentos ditados pelas convenções sociais, não permitindo liberalidades ou quebra de regras.

Porém, ao assistir a um casamento num fim de semana, compreendi na plenitude o significado de como a pobreza pode ser um estado de espírito, implícito naquela lista, e não pude esquivar-me de imaginar mais um item nela. Na verdade, tudo indicava que não era um casamento de pobre. Apesar dos noivos serem dekasseguis (brasileiros que vão trabalhar no Japão em subempregos para lucrarem com a defasagem cambial), o noivo branco e a noiva filha de japoneses, a igreja católica escolhida, a maior e mais suntuosa da cidade (Marília, SP), e o bufê encomendado a uma das melhores casas especializadas, indicavam que seria um evento um pouco mais sofisticado do que o normal. Talvez os noivos tivessem sido bem sucedidos no seu trabalho no exterior (e muitos deles, se são disciplinados, realmente o são, conseguindo até a abertura de empresas próprias no Brasil). Enfim, por causa dessa expectativa, não me preparei convenientemente para enfrentar uma desagradável situação na festa. Isso porque já havia algum tempo que não ia a casamentos e, apesar de conhecer seus rituais, a expectativa de um casamento mais sofisticado, repito, me traiu.

Fui ao casamento quase como um penetra, pois quem fora convidada era minha irmã mais velha, pela mãe da noiva, sua amiga. Como minha irmã tem uma deficiência física parcial e eu sou uma espécie de motorista particular (sem remuneração) nas situações em que ela precisa se deslocar para os lugares, também me mandaram um convite.

Os convidados, por volta de uns cem, não lotaram a enorme igreja. A noiva, a última a entrar na igreja, só apareceu, nas minhas contas, meia hora após o horário colocado no convite. Soube há algum tempo, em reportagem na televisão, que, em um verdadeiro casamento de pobre, em São Paulo, desses que ficam em fila na igreja e em que o padre determina o horário de cada um, o atraso de dez minutos provocou o cancelamento pelo padre e um processo por parte do casal contra ele. Um atraso enorme de meia hora, portanto, determinava que o casamento tinha uma certa consideração pelo padre. O que faz o dinheiro! Até os padres são corruptíveis por ele. A cerimônia foi solene, os convidados e os vários padrinhos bem vestidos (não sei por que há tantos padrinhos hoje em dia), o padre muito cordial e paciente com todos, filmagem, fotos do casal com os pais e com cada casal de padrinhos. Enfim, a cerimônia deve ter demorado uma hora mais ou menos. Casamento de pobre, no máximo, deve demorar uns quinze minutos.

E fomos todos para o bufê. Atrasamos um pouco e, quando chegamos, os convidados já estavam mais ou menos acomodados, esperando os noivos. Local agradável, salão não muito amplo, mas aconchegante, suficiente para todos, mesas já postas, vasos com flores no centro de cada uma, pratos com guardanapos de pano e talheres já dispostos. Garçons rodando as mesas, servindo refrigerantes e coquetéis. Música suave comandada por um profissional contratado, manipulando lá seus botões na parafernália instrumental. As iguarias dentro de recipientes fechados mantidas a fogo brando, enfileiradas numa mesa comprida, esperando o início do jantar. Tudo razoavelmente chique. Não era uma festa glamourosa, dessas de celebridades que vemos nas reportagens de revistas de fofocas, mas parecia ser bem elegante, bem acima dessas festas feitas em anexos de igrejas, clubes pobres ou casas amplas de parentes, onde um amigo se encarrega do churrasco.

Os noivos entraram, sob aplausos, depois cumprimentaram todos os convidados, um por um, sob filmagem e fotos, acomodaram-se. E, finalmente, o bufê foi liberado, todos se colocando em fila para servirem-se, com ajuda dos garçons. Fiz o prato de minha irmã, depois fiz o meu e tratamos de nos refestelar com a comida, à base de carne. Boa a comida também, não muito variada, mas suficiente para um bom jantar.

Terminamos de comer, música, risos, tudo caminhando bem. Um bom casamento, penso. Poderia parar por aqui, mas o motivo de eu ter escrito tudo isso, até aqui, ia acontecer agora e revelar que pobreza é realmente um estado de espírito.

Eu estava certo de que não aconteceria neste casamento, mas o grupo formado em torno do noivo, em algazarra e puxando-o pela gravata, indicava que o ritual do leilão da gravata ia começar. Acompanhando o grupo, devidamente requisitado, o profissional da filmadora, que revelou mais tarde ser um trunfo poderoso. Aquele amigo mais extrovertido que comanda o grupo, o que puxa a gravata, com o noivo se esgoelando, mas rindo, chega perto de nós, pede a atenção de todos e brada:

- E aí, pessoal! Todos comeram bem? Estão satisfeitos? Tudo bem, né? Mas vocês estão pensando que isso é de graça? Nããão... Agora vem o pagamento, tá?

Por não acreditar que aquilo aconteceria, eu viera desprevenido, sem nenhuma nota de um mísero real no bolso. Juntando a atual e crescente disseminação do uso do cartão de débito ou crédito nas compras (até na padaria tem uma máquina!) ao meu incurável e crônico pão-durismo, a conseqüência é que hoje é difícil eu andar com dinheiro no bolso. Pela proximidade do grupo, calculei que eu seria a primeira vítima e entrei em pânico. Por sorte estavam perto da entrada do salão e resolveram investir primeiro em cima de um convidado que saíra e voltava ao salão.

Minha irmã conversava com a mãe da noiva e não teve jeito. Premido pela urgência, interrompi a conversa e perguntei-lhe se tinha dinheiro para me emprestar. Ela começou a vasculhar a bolsa, enquanto a primeira vítima resistia bravamente. Por estar de pé, essa vítima desvencilhou-se, embora a muito custo, do ataque. Então se dirigiram a mim, enquanto minha irmã sacava uma nota de dez reais. Cercaram-me, viram minha irmã entregar-me a nota e o líder não deixou por menos:

- Só dez reais? Quem é que manda aqui? É o homem que tem que dar o dinheiro! Só dez reais? É pouco, é pouco! Olha aí, pessoal, só dez reais! – bradava o homem, brandindo a nota para o público e para a câmera – É pouco, é pouco! Filma aqui, filma aqui, só dez reais! Tá filmando, hein, tá filmando! Só dez reais! Tem que dar mais!

Estava claro que toda a encenação visava mostrar para as próximas vítimas que o valor de dez reais era pouco. Mas fiquei firme, mesmo porque não tinha muito o que fazer, pois parecia que aquela era a única nota que minha irmã portava. Depois de me azucrinarem por mais um tempo que me pareceu eterno, enfim, para meu alívio, me deram um pedacinho da gravata e resolveram partir para outra mesa, quando constataram que nada mais conseguiriam de mim.

Parecia que o pior tinha passado com relação ao ritual e relaxei, presenciando o ataque às outras vítimas. Depois de um bom tempo, rodando todo o salão, pararam à mesa em frente à nossa, importunando a vítima da vez. Parecia que ali haviam conseguido uma boa doação, pois exultaram com a nota colocada na bandeja, festejando com o colaborador. Como eu estava bem próximo, o líder me fixou com um olhar inconformado, como que se perguntando se uma última tentativa não poderia render alguma coisa. O que eu temi aconteceu: voltaram à carga. Preparei-me, não tinha muito o que fazer, apenas agüentar a nova investida. Enquanto me mostravam a nota de vinte reais que o vizinho doara, dando a entender que minha colaboração fora pífia em relação à dele, reparei na bandeja algumas notas de dois reais. Foi o meu trunfo. Peguei uma delas e a brandi, mostrando que tinham sido doados valores menores do que o meu. Com isso, arrefeceram e me deixaram em paz.

Depois do périplo por todo o salão, foram até o estrado do músico, interromperam-no e tentaram ainda leiloar a cueca do noivo, iniciando com o valor de cem reais. Francamente, quem é que vai levar para casa uma cueca usada e, ainda por cima, suja? Pelo que percebi, ninguém ficou com a cueca.

O grupo se reuniu num canto para conferir a arrecadação. Depois, o líder passou perto de nós com um dos amigos e consegui ouvir dele algo sobre o montante arrecadado ter sido bem satisfatório, como um comerciante satisfeito com a féria do dia.

Agora, enfim, aquela importunação parecia realmente terminada. Minha irmã comentou algo sobre o convidado poder levar o vaso com flores da mesa, que era um brinde que os noivos ofertavam para os convidados.

Enquanto ela dizia isso, percebi algo que me deixou atônito. Um grupo de amigas da noiva agora também corria as mesas, a noiva a tiracolo, a líder exibindo um dos sapatos brancos da noiva, no qual solicitava que colocassem novas doações. Não era possível que tal coisa estivesse acontecendo. Iria passar de novo por toda aquela agonia? E pelo vexame de nada poder doar?

Lembrei-me do vaso com flores, cheio de água. Falei para minha irmã que teria que tirar a água do vaso para o levarmos e peguei o vaso para levá-lo ao banheiro. Depois de tirar a água, levei o vaso para o carro no estacionamento. Esperava que nessa saída estratégica não me notassem e esquecessem de mim.

Quando voltei minha irmã sugeriu que fôssemos embora. Que alívio, íamos escapar dessa. Para não sairmos de fininho, fui despedir-me da noiva. Aproximei-me dela quando suas colegas ocupavam-se de uma vítima, disse que íamos embora e dei-lhe os parabéns mais uma vez. Ela me deu um olhar meio atravessado, com uma indagação no rosto e mal balbuciou uma despedida. Será que ela estava decepcionada comigo, por não estar colaborando? Sei lá.

Saí com um sentimento meio de culpa, mas o que é que podia fazer?

Sei que corro o risco de passar por ridículo, mal-humorado, mão-de-vaca empedernido ou sociopata, mas não vou deixar de registrar aqui minha indignação, seja ela fundamentada ou não, contra esses rituais torturantes, que me parecem cada vez mais agressivos.

Disse no início que eu tinha mais um item a acrescentar naquela relação de “coisas de pobre”. Eis aí, então, mais uma coisa de pobre: Leilão da gravata no casamento!

Quero aqui deixar claro que nada tenho contra os verdadeiros casamentos de pobre. Aliás, sou até injusto com eles, pois, pelo que me lembro, nos casamentos de pobre em que fui, nunca fui importunado pelo ritual da gravata ou do sapato da noiva. Talvez nesses casamentos haja por parte dos noivos e amigos um sentimento implícito de que os convidados são tão simples e pobres como eles e não teriam como arcar com uma contribuição para a festa. Talvez haja por parte deles a dignidade de considerar que seus convidados devem ser respeitados, quando se apresentaram para prestigiá-los, e, portanto, devem ser resguardados de quaisquer aborrecimentos. Também não acredito que nos casamentos de ricos, desses de celebridades, hajam tais rituais, pois configurariam uma humilhação para os noivos. Portanto, esses rituais parecem estar restritos aos casamentos na classe média, à qual devo pertencer.

Talvez esses rituais possam ser explicados pela psicologia evolucionista (“O Animal Moral”, de Robert Wright), cujo conceito sobre o “altruísmo recíproco”, por aqui mais popularmente conhecido por “toma-lá-dá-cá”, se revela de forma tão escancarada nos relacionamentos dos nossos atuais políticos. Esse conceito nos diz que toda ação altruísta tem por objetivo oculto receber uma retribuição, de preferência no mesmo valor. Uma característica que estaria entranhada nos nossos genes, fruto da evolução da espécie.

O caso do pai de família que comemora o aniversário do filho no McDonald’s e depois fica conferindo o valor dos presentes para ver se não teve prejuízo no investimento ratifica perfeitamente esse conceito.

Mas eu não preciso acatar bovinamente a ditadura do meu gene egoísta (“O Gene Egoísta”, de Richard Dawkins) e quero aqui iniciar uma campanha para acabar com os rituais da gravata e congêneres. Proponho o seguinte: se todos nós nos recusarmos peremptoriamente a contribuir nesses rituais, eles acabarão por falta de retorno. Mas como recusar, diante da ameaçadora filmadora? Faça o seguinte: quando for convidado a um casamento, não leve nenhum dinheiro no bolso. Leve apenas seu cartão de débito ou crédito. Quando o atacarem, diga que se habituou a usar apenas cartões nas suas transações e exiba o seu, perguntando se não têm a máquina de cartões. Como obviamente não terão, pois tais máquinas só são viáveis nas empresas, você se livrará da contribuição. E ainda posará de pessoa moderna e esnobe, antenada com os avanços tecnológicos.

Estou sabendo que nas igrejas evangélicas, no lugar das famosas sacolinhas, já estão aparecendo máquinas de cartões. Mas se elas começarem a aparecer nos casamentos, pensaremos numa nova estratégia.

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 20/06/2007
Reeditado em 11/07/2022
Código do texto: T534422
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