O Senhor é meu pastor...

A sirene da ambulância confirmou aquilo que o povo já percebia - a missa daquela segunda-feira a noite havia sido cancelada. Depois de muitos rumores, conversas, cochichos, a verdade apareceu: o padre Francisco, pároco daquela igreja há muitos anos, tinha passado mal antes da missa, desmaiou e foi levado ao hospital. Depois de alguns dias em coma o prontuário ao lado da sua cama confirmava que, depois de anos se deliciando no prazer de fumar, esse vício tinha lhe dado um câncer de pulmão de brinde. E como todo câncer, descobrir tarde demais reduz a chance de viver, rouba anos, meses e dias de vida.

Ao acordar, depois de dias de sono profundo, o padre, sem saber onde estava, acordou seu companheiro de quarto com um sonoro: “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”. Se ao menos ele soubesse quem era seu companheiro de quarto talvez tivesse pensado um pouco antes de gritar. Ele se chamava Antônio Guimarães - um grande comerciante da cidade - que tinha no prontuário praticamente as mesmas palavras usadas para o padre. Esse não era o problema. Da parte de Antônio, o padre era um grande desafeto porque há cerca de quinze anos, quando procurou o padre para o batizado do filho, saiu de lá “cuspindo marimbondos”. Dentre as coisas ditas ao padre, além de, Deus não existe e só vim aqui por obrigação e apelo da minha esposa, ele o insultou, pois não queria entrar numa igreja ou como ele mesmo disse num culto - a grande ilusão da humanidade.

Depois disso, silêncio. O salmo 23 seria recitado naquela missa que Francisco não celebrou, talvez por causa disso e pelo efeito dos remédios que ele tomava, passou a ser algo constante Antônio ser acordado pelo padre ao som da frase célebre deste salmo, ora falando, ou gritando assustado. Os dois não se falavam muito até que um dia durante a tarde chuvosa o padre mais uma vez disse em voz alta “O Senhor é meu pastor, nada me falta” e Antônio devolveu na mesma altura – “A próxima vez que você disser isso vou aí e te quebro os dentes”. O padre riu. Pensou que não ouviria a voz daquele homem e disse que perder os dentes não era o maior dos seus problemas, com a dor que ele andava sentindo sequer se lembrava de que os possuía. O padre ofereceu para contar uma piada. Antônio ficou calado. Então ele contou mesmo assim, partindo da ideia de que quem cala consente. Não houve riso após a piada, quer dizer, houve a gargalhada do padre rindo de si mesmo. Todos os dias uma piada nova, todos os dias o salmo 23 era falado. Depois das insistências do padre e a não recepção do seu colega, antes de uma piada o padre disse: “Vou te contar uma piada, caso não ria vou quebrar todos esses seus dentes amarelos sua chaminé ambulante”. Antônio riu e lembrou ao padre que não gostava dele principalmente por ele viver de uma grande mentira. Francisco aproveitou para contar como se tornou padre. Daí em diante não houve dentes quebrados, mas passavam bons momentos com as piadas e os casos do padre Francisco. Com uma bola de papel na mão o padre foi certeiro, destruiu o muro do orgulho. Com a pouca força que tinha acertou o nariz daquele homem sério, ranzinza e sem fé. O padre estava conquistando um amigo, até o dia em que Deus esteve em questão.

Antônio perguntou ao padre porque não desistir, se ele não via o estado em que ele se encontrava. O padre riu e disse – você me entenderá quando O conhecer. Ele também é o seu pastor. Houve silêncio e uma afirmação: “Perdi minha mãe muito cedo, não acredito em um pai que permita isso há um dos seus filhos”. E o padre percebeu que aquele ateu tinha uma certa mágoa com Deus e contou-lhe um segredo.

“Amigo”, disse o padre, “durante a cirurgia a que foi submetido seu filho mais novo (o padre acreditava ter 8 mas ele tinha 10 anos) ele veio até mim e me fez uma pergunta. Quer saber qual foi?” O aceno com a cabeça permitiu que o segredo viesse a tona. –Seu filho me perguntou se ele confessasse no seu lugar o que você pensa de Deus, se Ele te perdoaria. Tive de dizer que não. As lágrimas do seu filho me comoveram, possivelmente, comoveu a Deus também, pois você tem melhorado nos últimos dias. A barreira quebrou, Antônio chorou. “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”, o padre disse antes de dormir. Antônio disse – Amém. Mais três dias de salmo 23, o comerciante foi mais rápido e disse antes do padre no último. O segredo do seu filho, a história de vida do padre (que perdeu o pai em um acidente quando entrou para o seminário) transformaram o coração daquele homem. –Boa noite, vou dormir, O Senhor é meu pastor. E não acordou mais. Foi o adeus do padre ao comerciante.

Eles tinham passado quase um mês juntos e, ao descobrir a morte do seu amigo, Antônio se levantou, quebrou o vaso de flores ao seu lado, brigou com a enfermeira e conversou com Deus a primeira vez – Que pai você é, que permite uma coisa dessas? Tirou de mim minha mãe,tirou meu amigo. Por que não salvá-lo? Por que você permitiu isso? Ele era um homem bom, se hoje falo contigo foi por causa dele. Uma semana depois, a mágoa não permitia que Deus existisse mais para Antônio. Ele estava em casa, sonhava com o padre, estava ficando debilitado por não se alimentar. –O Senhor é meu pastor, nada me falta e você tira a vida daquele homem. Parabéns papai! Essa era sua oração a Deus.

Uma carta chegou na semana seguinte. Uma enfermeira levou para ele, disse que era do padre. O padre tinha entregado para ela e pediu que esperasse alguns dias para entregar.

“Querido amigo, espero que esteja bem e que não tenha brigado com Deus por minha causa, vi brilho nos seus olhos antes de você dormir para que eu escrevesse isso. O Senhor é meu pastor e nada me faltará, não me faltou a doença que cultivei pelo vício, não me faltaram dores, principalmente quando ria com você, parecia que iria explodir de dentro pra fora, desculpe menti, sentia dor o tempo todo, principalmente quando tossia e eu falava que não era nada, senti dor para te jogar aquele papel no nariz, não me faltaram dores, medo de morrer, não meu amigo, não me faltou. Durante esses dias, sofrendo, sentindo dor, sentindo medo, Deus foi o meu pastor. Ele me deu a força necessária para que aguentasse tudo isso para salvar a última ovelha que eu podia entregar para Ele. O meu pastor me manteve com fé, tive medo mas tive a certeza que estava com Ele, estive fraco mas nunca me senti tão forte quando vi seus olhos brilharem. Amigo, Ele é o nosso pastor. Não me faltou alegria no meu leito de morte, ela tem nome se chama Antônio. Eu nunca delirei, foi de propósito, te acordava com o salmo 23 porque sabia que ele te conduziria para Deus e espero que tenha sido assim. Um abraço, falarei com o papai pra proteger você. Adeus! O Senhor é meu pastor, nada me faltou.”

Houve choro, abraços. Não faltou saudade, não faltou tristeza, não faltou amor de Deus, mesmo Antônio o rejeitando.

G.A. Ferreira

Gabriel Antunes Ferreira
Enviado por Gabriel Antunes Ferreira em 18/08/2015
Código do texto: T5351095
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