Estamos sendo comidos

Minha leitura do romance '2666', de Roberto Bolaño, avança agora pelo deserto de Sonora, na fronteira do México com os Estados Unidos. Já percorreu, ao todo, quase seiscentas páginas, duzentas só no deserto, entre cactos e arbustos cobertos de terra amarela, e nas ruas e trilhas da periferia de Santa Teresa, onde mulheres jovens (a maioria trabalhadoras pobres das inúmeras fábricas da região) são sequestradas, estupradas e assassinadas, e seus corpos abandonados em terrenos baldios, lixões ou becos mal iluminados, em meio a caixas de papelão, sacos plásticos e outros restos de coisas largadas e imprestáveis.

O que mais encontramos nessa parte do livro são cadáveres, centenas deles. E investigações que não levam a nada, policiais corruptos, pobreza, drogas. Aqui Bolaño descreve o mal. É horrível, angustiante. A sensação é de desamparo, de impotência. Cada corpo descoberto, cada caso arquivado sem solução (e quase todos são arquivados sem solução), são como punhaladas no peito.

Estou pensando no Brasil. Na violência do Brasil. Na corrupção. Na injustiça. Naquela gente indo às ruas para pedir golpe militar. Meu Deus... Sinto-me desamparado, perdido. É como estar em Santa Teresa, cercado de cadáveres por todos os lados e não ter o que fazer a não ser vê-los serem levados por suas famílias, um atrás do outro – pelo menos os que são identificados, porque muitos não são, e acabam enterrados em valas comuns ou sendo encaminhados às banheiras de formol da Universidade de Santa Teresa para serem dissecados por estudantes de medicina. E fica nisso.

Olho para cima e vejo urubus. Eles rodeiam a gente, querem nossos olhos, nossa carne, nossas vísceras. Em Santa Teresa, um dos policiais que investigam os crimes conta piadas machistas para seus colegas, que riem: “O que fazer para ampliar a liberdade de uma mulher? Dar uma cozinha maior para ela. E o que fazer para ampliar ainda mais a liberdade de uma mulher? Ligar o ferro de passar numa extensão”. Risos. E mais corpos. E nenhuma medida efetiva é tomada.

No Brasil também é assim. Saúde, educação e segurança são como cadáveres no deserto sendo comidos por urubus, pela corrupção (mal profundo e disseminado). E contra isso, o que se faz? O que fazemos?

Estamos sendo comidos. E o cheiro é insuportável.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 19/08/2015
Código do texto: T5351458
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