Nasci popular. Certamente. Nascemos todos. Não que eu tenha lembranças deste pequeno período tão maravilhoso quanto turbulento em minha vida. Todavia, eu nasci popular. Aprendi vendo que todos – com raríssimas exceções – nascemos populares. Beijos daqui, colos dali, cada um querendo fazer um pouco de festa assim que deixamos a quentura dos deliciosos ventres que nos carregam por nove meses sem reclamar – com raríssimas exceções. Uma pena eu não ter a imagem deste tempo em minha sofrida memória. Mas foi um tempo que durou pouco tempo. Três anos depois deste período festivo minha popularidade foi para o brejo. Nascera minha irmã. Bibelozinho, coraçãozinho, anjinho... Era tanto “inho”. O nascimento de minha irmã retirou o meu status de “number one” nas preocupações gerais da família. Deixava então a popularidade para entrar num quase ostracismo que nos outros três anos mais tarde se acentuaria com o nascimento de meu irmão. O caçulinha, o pimentinha, o sapequinha... Era tanto “inha”. Pois é, foi mais ou menos assim, mas não deixarei que vocês esqueçam de mim tão facilmente. Não estou aqui para falar do caçulinha, nem do coraçãozinho,  mas daquele que deixou o colo prematuramente para ir à padaria, à farmácia, ao mercado, etc.
Cresci como crescem todas as crianças – com raríssimas exceções. Claro, dentro deste ambiente aonde os carinhos e as atenções já chegavam a mim despencando, desfalecidos, acabei por me tornar uma criança introspectiva. E assim, cheio de gás e vontade de aparecer, mas sem saber como, lá fui eu iniciar meu período escolar.
Adentrando a escola percebi que ali ser popular também tinha as suas vantagens. E que vantagens! Raríssimas eram as exceções. Falo muito em exceções. Mas neste caso específico quais seriam as exceções? Pergunto e respondo: Ser popular por chegar sempre atrasado, estar sempre de castigo, perder sempre os recreios... Essas eram algumas das exceções. Agora, ser o mais engraçado da sala, estar sempre envolvido com as meninas mais bonitas, ser sempre convidado a participar das peladas enquanto matava algumas “aulinhas menos importantes”, ah isso era ótimo! Era o desejo de todos os meninos – ai que saco! – raríssimas eram as exceções. Neste caso, os populares por natureza não se preocupavam muito com essa coisa de popularidade. Eles o eram e pronto. Nós, os “bichinhos do mato” é que ficávamos roendo as unhas na expectativa de um melhor relacionamento, seja com os colegas, seja com as meninas – isso sim o que mais importava – com raríssimas exceções. O tempo mais uma vez resolveu não esperar por mim e passou. Eu passei o tempo observando a popularidade dos populares enquanto a minha popularidade ficava só na vontade e nas privações. Puxa, como eu desejava ter sido popular diante daquelas loirinhas!
Finalmente comecei a largar a adolescência. Adolescência que naquele momento já havia estampado em meus desejares uma constatação: meu amigo esqueça de tentar ser popular e observe o que puder. E claro, eu obedecia a mim mesmo. Já obedecia a tantas pessoas, uma a mais, uma a menos... Por incrível que possa parecer, a minha popularidade dentro de casa, perdida há tantos anos, timidamente retornava ao convívio familiar. “Ei meu querido, quando é que você vai arranjar um empreguinho?” “Meu filho, você não pode ficar nessa vagabundagem” É... A popularidade agora, depois de tão desejada, começava a me tirar o sono. Eu não podia mais ficar com o troco da padaria sem criar um constrangimento. Lá fui eu rua a fora procurar uma possibilidade de mandar aquela popularidade pra “cucuia”. Graças ao bom Deus as pessoas no primeiro momento gostaram daquele homem esculpido durante minha vida inteira à margem da popularidade. O que antes era tímido agora se parecia com austeridade, seriedade. As portas foram se abrindo – claro, com inúmeras exceções – gastei foi sola de sapato.
Tornei-me um homem avesso à popularidade gratuita. Preferi sempre observar, a ser observado. Sentia-me bem assim. Deixei a popularidade para aqueles que pareciam não ter amadurecido o suficiente, ou para os artistas que vivem de sua popularidade. Finalmente eu estava livre deste desejo nunca saciado – com raríssimas exceções como já descrevi. Quero dizer, eu achava que “estava” livre desse desejo de ser popular. Ledo engano.
A casa de minha mãe acabou ficando pequena demais para nós dois, digo, para nós onze. Eu, meus irmãos, filhos e sobrinhos atazanávamos a paz daquela que já merecia ter um pouco de descanso longe do fogão e da máquina de lavar. Claro, assim como fui o primeiro a perder a minha popularidade, o primeiro a ganhar algum sustento, havia de ser o primeiro a juntar as trouxinhas e cambar fora do aconchego de minha mãezinha e das asinhas do meu pai. Pensei: Preciso comprar um apartamento! E lá fui eu procurar por um. Mas não poderia ser um apartamento qualquer. Não senhor! Afinal de contas eu não ganhava tanto assim. Precisava ser um “apartamento popular”. Meu Deus do céu!!
A moça me atendeu com muita simpatia. Levantou-se e me encaminhou até a sua mesa. Puxa, com aquele rosto, aquele cabelo e aquela silhueta ela deve ter sido muito popular em sua escola, pensei. Muito atenciosa foi logo me mostrando tudo o que eu deveria comprovar a fim de ser aprovado em um pré-cadastro para a aquisição do imóvel desejado. Ela nem me falou a respeito do imóvel, onde ele se localizava, as suas condições e se as minhas condições permitiriam tal petulância: querer comprar um apartamento popular. Minhas condições atenderam às exigências da moça, digo, do imóvel, com uma, não raríssima, mas pequena exceção: Não me sobraria dinheiro do salário para comer, vestir-me, locomover-me, acender luzes em casa e nem lavar roupas – este último detalhe era o menor de todos, pois não sobraria dinheiro para que eu comprasse roupas também.
 
- É meu senhor, parece não haver condições para o senhor adquirir um apartamento popular. E olha que esse é o mais popular que nós temos por aqui. Disse a moça já com mais pena do que simpatia.
 
Puxa, novamente eu desejava ser popular. Não popular no conceito de meus colegas ou das menininhas que ainda cercavam meus desejos, mas popular diante das condições solicitadas para a aquisição de minha nova casa, de meu apartamento. E olha que o meu endereço não seria dos mais próximos. Quer dizer, fosse eu popular o suficiente para conseguir morar naquele fim de mundo, acabaria por perder a pequena popularidade que jazia diante de minha família. Comigo dentro de casa, lhe dando roupa para lavar e comendo de sua comida, minha mãe já não me notava como nos primeiros três meses de nosso relacionamento, imaginem como seria comigo distante horas e quilômetros de sua casa. Eu sumiria do mapa literalmente – não acredito que aquele endereço conste de algum mapa. Retornei ao meu recanto e disse a minha mãe que precisaria passar mais um tempinho ao seu lado. Tempo suficiente para que eu me tornasse uma pessoa popular – não popular entre os coleguinhas e amiguinhas... -  isso já está ficando chato – mas, popular diante da realidade imobiliária que nos cercava. Ela entendeu. Balançou a cabeça negativamente e voltou ao seu fogão. Ah essa minha mãe...
Alguns anos se passaram e parece que todos incluindo eu – tínhamos esquecido de minha necessidade de ser popular. Todavia, essa sensação não me acompanhou por muito tempo. O menino introspectivo transformou-se num homem charmoso. Ao menos era assim que me viam as mulheres, quero dizer, uma mulher, uma rara exceção. Que mulher linda – eu a achava linda, mas não discutia com a maioria – sabia que os olhos de um apaixonado não mediam medidas nem parâmetros de padrões de beleza. Mas a paixão estava lá. Puxa, finalmente um afago, um colo, beijos e carinhos de uma mulher que não fosse minha mãe. Pouco com Deus é muito! Essa frase é uma das raras exceções que guardo de minha infância e que caia muito bem diante da “beleza” da mulher por quem me apaixonei. Eu estava feliz. Mesmo sem contar com uma pequena popularidade sequer, eu havia conquistado alguém. Só quem é tímido na infância sabe o peso de uma conquista. A vida estava maravilhosa, mas vidas maravilhosas precisam ser sustentadas, mantidas com esta aura. Eu precisava incrementar o meu relacionamento. Pensei, pensei e finalmente achei uma resposta: Um carro!  Decidi então comprar um carro para carregar meu bibelozinho, meu coraçãozinho... É muito “inho”. Sim, não poderia ser um carro qualquer, afinal de contas com o esmagamento da minha relação salário/despesas/desejos, eu não poderia adquirir um carro qualquer. Teria de ser um “Carro Popular”. Não consegui conter as lágrimas quando esta constatação socou a minha cara. E lá fui eu para a agência.
“Vinte e cinco mil reais!! O Senhor está ficando maluco?” Esta frase ficou em minha memória. Foi a frase mais enfática da conversa que tive com o vendedor de carros populares que conheci. “Meu senhor, eu precisaria trabalhar um ano e meio sem comer, vestir-me, locomover-me, acender luzes em casa e nem lavar roupas – não que eu  pudesse comprar roupas – para poder pagar essa fortuna por este carro. Aliás, uma pergunta; Este carro possui vidro elétrico, é um de meus sonhos: um carro com vidro elétrico.”
 
- Não meu senhor, este carro não possui vidro elétrico, direção hidráulica, ar condicionado, air bag, limpador traseiro... Enfim, eu levaria muito tempo para dizer ao senhor o que este carro popular não possui. Eu sinto muito.
 
A simpatia daquele belo rapaz, louro, alto e de olhos azuis – puxa, ele deve ter arrasado em sua época de escola – mas sua simpatia transformou-se em dó imediatamente. Imediatamente também ele me dispensou e foi dedicar sua simpatia a um outro cliente que se aproximava. Pois é, eu não era popular o suficiente para ter um carro popular. Como eu queria aparecer diante dos índices do IBGE como um “cidadão popular”. Aliás, eu nem sei o que precisaria fazer – fazer não, ter – para me tornar um homem popular. O casamento? Que casamento? A necessidade de pegar ônibus não sustentou nem o noivado, quanto mais o casamento. Lá estava eu novamente destinado aos lamento de fim de dia no colinho quente de minha mãezinha.
Nasci popular, mas minha popularidade não completou nem a primeira infância. A escola passou, a adolescência passou a vida adulta chegou e eu ainda sou obrigado a desejar uma popularidade que agora custa muito caro. Antes me custavam beijos não dados, carinhos não recebidos, peladas não disputadas, mas agora me custam dinheiro. Sou um homem do povo, mas não posso vestir a alcunha de popular. Não, definitivamente eu sou um cidadão abaixo da popularidade. Porque se eu for considerado popular – para o IBGE, talvez – alguém tem de dizer ao mercado que seus carros e apartamentos não têm nada de popular. Mas deixa isso pra lá. Novamente estou eu aqui, diante do nada, curtindo minha introspecção, descobrindo que um dia minha sorte chegará. Um dia eu serei popular, sim, certamente eu serei. Todos em minha família, meus amigos e conhecidos olharão para mim – com raríssimas exceções – e comentarão coisas boas ao meu respeito. Eu também estarei presente – não é tão lógico assim. Eu estarei presente neste dia. No dia em que finalmente voltarei a ser popular. Mas estarei apenas de corpo presente. Uma pena o fato de que não terei imagens deste dia em minha sofrida memória...