Cartas Rasgadas

Só quem viveu (e amou) na década de noventa sabe o significado que o rasgar das fotos (sim, elas eram impressas) tinham para o fim dos relacionamentos. Uma das primeiras reações, quando seu coração estava partido em mil pedaços, era juntar todos os retratos do (agora não mais) casal e separá-las ao meio. As vezes até queimá-las. (Eu sei, é estranho) Contudo, mais que um gesto de revolta, o simbolismo por trás daquilo demarcava o desvencilhar dos nós que ainda prendiam um coração ao outro. O fim de uma grande jornada que calejou muito mais que os pés.

Basicamente, foi essa a sensação de estar coberto daquele olhar vazio, que há pouco mais de três meses era quem me revestia a alma de calor. Tudo aconteceu no ponto de ônibus, enquanto eu esperava alguma linha que me levasse para a faculdade, na zona sul de Natal. Já fazia algum tempo que não nos falávamos, nosso namoro terminara de forma conturbada, mesmo que nossas últimas palavras tenham sido amigáveis.

Como qualquer outro dia na capital potiguar fazia bastante calor, mesmo o céu coberto de noite e a primavera batendo à porta. Por volta das sete, me encontrava sentado no banco de uma das paradas da Hermes da Fonseca lendo García Márquez, totalmente desatento no que acontecia ao meu redor, quando tive aquela sensação de estar sendo observado. Levantei a cabeça e, num súbito nó na garganta, fixei meus olhos nos dela, que agora já não pareciam os mesmos. (Talvez não para mim).

O olhar é a parte mais expressiva do corpo, aquela que sempre te entrega e te faz se perder por alguém. Nosso relacionamento ruíra, dentre outros motivos, por, depois de tantos anos, aprendermos a ler o que diziam nossas pupilas, que, diferente de outrora, já não morriam de amores pelas do outro.

A minha reação foi instantânea, fechei o livro rapidamente num gesto despretensioso de mostrar atenção. Ela, que se encontrava na fila para pegar o ônibus (provavelmente já estivesse na mesma parada que eu há algum tempo e nem sequer tenha me visto - ou não), deu um sorriso meio troncho, daqueles que oferecemos em alguma situação constrangedora. Minha boca balbuciou alguma coisa que nem eu fui capaz de compreender, fazendo-a assentir com a cabeça e seguir o curso da fila.

Parecíamos dois estranhos, talvez antigos conhecidos que estudaram em classes diferentes no curso de inglês que frequentei por três semanas ou aquele amigo daquele cara que nem é tão amigo seu e que você só viu uma vez numa segunda-feira fria de agosto.

Sempre que pensava no futuro, imaginava que nos esbarraríamos em alguma viela europeia. Ela casada, com filhos e feliz. E eu famoso(sic), separado, com muitos livros para escrever (sim, como em Antes do Amanhecer). Trocaríamos meia dúzias de palavras nostálgicas, quem sabe até convidasse para tomar um café (o que ela recusaria), e seguiríamos nossas vidas em paz. Escreveria uma crônica como essa (que, provavelmente, ela nem leria) e aquele assunto continuaria enterrado em mim, para sempre. Mas não, não foi assim e nem nunca será. Ela apenas me lançou um olhar vazio e sumiu mais uma vez da minha vida.

Não consegui voltar a ler após o ocorrido, achara que aquilo nunca mais me afetaria e que seria fácil levar a vida à diante. (Tolo). Mas não, aqueles dois olhos castanhos que me banharam de indiferença, também serviram como um marco no desvencilhar de nossas histórias. Hoje ninguém mais rasga fotos dos amores passados, mas pode ter certeza que um olhar seco como aquele lançou sobre mim, causou-me algo que se equipara ao rasgar, queimar e esquecer longos anos de amor.

Gonzaga Neto
Enviado por Gonzaga Neto em 26/08/2015
Reeditado em 26/08/2015
Código do texto: T5360048
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