Ossos do Ofício

Ela ouviu os passos na escada. Sempre ouvia.

Um. Dois. Três.

Pausa para buscar a chave, que seguido de passos lentos, ela sabia.

Quatro...

Cinco...

Seis...

Os passos lentos de quem sempre perde a chave na mochila.

Oito, nove, dez.

Achou a chave.

Ela se empertigou no sofá. Os cabelos estavam revoltos, presos num rabo de cavalo torto. Agora estava procurando a chave no chaveiro abarrotado. Ela ajeitou o cabelo e se jogou no sofá de novo.

Casual. Estava assim quando a viu. Sempre estava.

Largada no sofá. TV ligada. PC no colo. Uma pilha de papeis ao lado. Sempre estava.

– Boa noite! – ele disse quando fechou a porta e colocou a mochila no banco que havia próximo a porta.

– Só se for pra você. – ela olhou para ele de cabeça para baixo e sorriu. O sorriso de boas vindas.

Ele se aproximou dela, beijou-lhe a testa e ofereceu a bochecha para receber o beijo dela.

– Esta deitada ai desde que horas? Não esta na hora de trabalhar, não? – ele disse beliscando-lhe a coxa, levantando os pés dela para se sentar na outra ponta do sofá com os pés dela em seu colo. – Faz nada da vida.

– Estou trabalhando desde que cheguei do trabalho, caso queira saber. – ela beliscou a coxa dele por cima da calça jeans com seus pés descalços. – Mas, eu realmente preciso sair desse sofá. Vou criar raízes.

Colocou o notebook no chão, jogou as pernas pro chão e se levantou do sofá. Estava de blusa grande e larga. Ia dormir. Só dormia assim. Ele a avaliou dos pés a cabeça, da cabeça aos pés, se demorando aqui e ali, lugares de preferência. Ossos do oficio, morar com ela e ter que olha-la em aspectos que só a convivência dá... ossos do ofício...

Ela foi pra cozinha. Há poucos passos da sala. Olhou para ele, que estava recostado no sofá, de olhos fechados, cansado. Ele as vezes ficava cansado de mais. Abriu a geladeira, tinha um pavê ali. Prestígio. Pecado. Pegou mesmo assim. Havia algumas vantagens em ir pra casa da família nos fins de semanas e feriados, sempre havia doce o suficiente para a semana toda depois que voltava. Colocou no pote e voltou para o sofá. Sentou, recostou-se como ele e ficou olhando-o. Não demoraria muito e ele já hibernaria. Mas, ela continuou olhando.

Quando abriu os olhos ele a viu. Ela sorriu. O sorriso de boas vindas.

– Podia ter trazido pavê pra mim. – ele disse.

– Você podia não dormir no sofá. – ela respondeu.

Ambos fizeram uma careta. Se voltaram para a TV. Ele roubou a colher dela. Ela tomou a colher de volta. No fim, dividiram o pavê.

Comentaram algo trivial. Riram de algo idiota. O pavê acabou. O programa na TV também.

A porta se abriu de novo e mais dois entraram. Uma correndo para o quarto, o outro se jogando aos pés deles. Quando a amiga voltou, sentou-se ao lado dela e tal como o pavê e o programa, o momento também havia acabado.

Ele pensou que ter momentos como aquele eram ossos do ofício. Ele sentiu a cabeça dela pendendo sobre seu ombro, e instintiva e cautelosamente pendeu a dele sobre a dela.

Ele acreditava que isso também era resultado do dia-a-dia.

Bem... seria isso ossos do oficio?.

Kizie Pontes
Enviado por Kizie Pontes em 01/09/2015
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