Ele
 
Conheceram-se no Movimento Estudantil.

Ele, estudante de Direito, filho de advogados, via dentro de casa como as leis se desconstruíam. Brechas nas emendas constitucionais, habeas corpus, mandados de segurança. A Justiça se vendia fácil a quem pudesse comprá-la.

Ele era estudante de Ciências Sociais, cotista, residente universitário.
O que ganhava de auxílio-residência mal dava para sustentar-se. Pelo curso ser diurno não podia ter um emprego.
Então ia se equilibrando, às vezes sem tomar café da manhã porque o restaurante universitário não oferecia o serviço, às vezes indo a pé do Benfica ao Pici participar de algum evento porque o Intercampi tinha horários específicos.
Viera do interior do Ceará, o primeiro de onze irmãos a ingressar em uma Universidade. Federal, ainda por cima. Era o orgulho da família.

Tempos difíceis aqueles. Cortes no orçamento da Educação, bolsas de pesquisa canceladas, a casa onde morava precisando de reformas.
Não gostava de baderna, era evangélico. Mais por influência da namorada que esperava por ele no Sertão. Muito embora gostasse dela faltava-lhe algo e ele não sabia o que era.

Aos dezoito anos a gente não sabe de muita coisa mesmo não.

Um dia ele encontrou na Xerox uma nota do Movimento Grevista, leu, interessou-se pelas pautas da Assembléia que ocorreria naquela tarde. Decidiu que iria ao mesmo tempo em que ele, pela internet, acessava a página do Movimento no Facebook.

Ele deixou o carro no estacionamento da Faculdade de Direito e seguiu a pé, rumo à Reitoria. Era a primeira vez que fazia aquele percurso sem carro, observando as ruas, sem se preocupar com o sinal fechado.
O Benfica era lindo. Casarões, lugares amplos, pombos no telhado da Casa de Cultura e gatos de olhares esticados para eles, deitados no mormaço da calçada.
Não sabia por que mas aquela tarde lhe parecia diferente. As cores do Sol eram mais nítidas, quase palpáveis.
Lembrou-se da namorada que estava em intercâmbio na Europa. Sim, aquele dourado lembrava-lhe os cabelos dela.
Sonhava alto, a menina. Queria ser desembargadora. Contava-lhe rindo, na cama, que conseguia ver o tapete vermelho estendido à porta do Palácio da Justiça e ela chegando, linda, em carro oficial.
Era linda mesmo. E bem-humorada. Ela merecia ser o que quisesse.

Cruzou o portão verde. A estátua do fundador da Universidade segurava uma bandeira, na verdade pregada a ela com fita durex. Ele riu, aspirou o cheiro da tarde e sentou-se nos degraus de mármore.
Sentiu-se incomodado por ser diferente da maioria dos presentes. Roupas caras, relógio de grife, cara de rico. Podia ao menos trocar a camisa.
Uma jovem miúda estava a distribuir camisetas do Movimento. Pegou uma e foi se trocar no banheiro.

Quando ele entrou ele estava lavando o rosto. Pelo espelho os seus olhos se encontraram.

Se encontraram. Para não se perderem nunca mais.
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 11/09/2015
Reeditado em 11/09/2015
Código do texto: T5378342
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