Casa de saúde mental
(mas pode chamar de academia)
 
Faz tanto tempo que venho frequentando diariamente uma casa de saúde mental, que às vezes acho que já passei para o outro lado e se esqueceram de me avisar. Pior, por um erro de trajetória devo ter caído nas garras do capeta.
 
Não, não se trata de um hospício. Esta palavra foi aposentada com a extinção dos arcaicos tratamentos à base de choques elétricos. Atualmente, está praticamente proibida.
 
Deve ser casa de saúde mental o estabelecimento ao qual a gente paga uma mensalidade para submeter o corpo a séries intermináveis de sevícias em esteiras, aparelhos elípticos e de musculação, bicicletas que não levam a lugar nenhum, pesos etc.
 
Mas não pense que é só isso. Tem o complemento para a mente. Música de fundo, que vinda de tão fundo é preciso deixar o aparelho de loucura no último volume. Nem imagine ouvir Bach, Beethoven, Mozart. É para arrebentar mesmo. E, para testar os limites do indivíduo, também tem um televisor simultaneamente sintonizado no programa da Ana Maria Braga. Como estou tentando dizer, isso é para os fortes.
 
Pois outro dia atingi o limite. A mistura da música com o “e aí/e daí” da Ana Maria, pronunciado em cada frase, mais a risadinha forçada daquele papagaio, chegou-me como uma tragédia. Não há de ver que, sem querer, fora de mim, tirei uma colega para dançar a zoeira em ritmo de tango?
 
O coach não gostou e me colocou de castigo. Todo dia tenho que me sentar num banquinho com o encosto a noventa graus, fechar as pernas como uma mocinha fingindo-se comportada e fazendo de conta que vestiu sem querer saia muito curta. Com dois pesos com a indicação errada – sim, há neles uma inscrição em relevo que menciona apenas quatro quilos, mas é mentira; quatro quando você começa o exercício e oito quando termina, logo, o fabricante deveria ter marcado “de 4 a 8 kg”. Pois bem, com um peso em cada mão tenho que fazer três séries de 24 bananas alternadamente, uma com o braço direito, outra com o esquerdo. Perguntei se não podiam ser 20 ou 30. O mestre respondeu que castigo é castigo; então, 24 e não se fala mais nisso.
 
Demorei um bocado para indagar a mim mesmo a quem eu estaria dando tantas bananas. Só então percebi que faço os exercícios diante de um baita espelho. Repare que espelhos não faltam nas academias. Estão em todas as paredes possíveis e são do tipo que refletem imagens levemente distorcidas, para que o aluno se ache mais forte e mais bonito, na base do me engana que eu gosto.
 
Pensei em me vingar e me permitir uns minutos de relaxamento. Assim, na série de exercícios com pesos nas mãos e deitado de costas sobre uma estreita plataforma cujo nome ainda não decorei – aliás, tudo que há de melhor se faz deitado; dormir, por exemplo – imaginei aquela morena do comercial de cerveja trazendo-me um belo copo dourado, de colarinho branco. Cheguei a sentir o refrescante chope goela abaixo, aliviando-me o angustiante calor. Devo ter cochilado balbuciando: vem Verão, vai Verão, vem Verão, vai Verão... Infelizmente, fui interrompido pela voz grave e alta do professor: acorda seu João e vai fazer mais trinta minutos de esteira.

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N. do A. – Na ilustração, A Escolha de Hércules de Annibale Carracci (Itália, 1560-1609).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 18/09/2015
Reeditado em 06/06/2021
Código do texto: T5386901
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