Ícaro
 
Fazia tempo que estava naquela margem, amarrado sob as árvores. Não sabia contar o tempo. Mas era muito.
Preso, com suas vontades de ventos e velas, ele assistia silencioso ao correr das horas.
Suas cores estavam desbotadas. Azul e vermelho. Liberdade e paixão. Tudo que ele queria.
Como sabia se queria se nunca vira nada para além das águas silenciosas da lagoa?
Mas sabia. A madeira de que era feito, velha e apodrecida, ainda trazia em sua memória a amplidão das grandes florestas, o canto dos pássaros em sua copa quando ainda era árvore, os casais que sob a sua sombra se deitaram para trocar beijos.
De árvore passara a barco. Perdera seus galhos mas ganhara a incrível sensação de navegar. "Navegar é preciso, viver não é preciso", dissera um poeta português.
Como ele sabia? Simples, lera o pensamento da garota de preto que sempre descia de botas pela encosta para fotografá-lo, admirar-lhe a simplicidade das formas, murmurar o seu nome com doçura. Às vezes quando era noite ela parava em frente à lagoa e ficava olhando para ele.
Conhecia o seu desejo mais profundo. Livrá-lo das amarras e navegar nele pela lagoa do Campus. Na verdade era um açude mas ela preferia que fosse lagoa. E assim seria para sempre. A lagoa.
Um dia, ele tinha certeza, ela levaria uma faca amolada, cortaria as cordas que o prendiam e subiria nele. Levaria lençóis para fazer as velas. De que cor? Brancos? Azuis? Entretinha-se em imaginar chegado esse dia. Ela iria acarinhar seu corpo, pisar com cuidado para não feri-lo. Cantaria uma linda canção. Seus longos cabelos negros estariam soltos. Ele nunca a vira de cabelos soltos. Deixaria as botas na margem? Talvez. Um sinal de que estivera ali.
E ele a levaria até ao meio da lagoa em um passeio sem volta. Ela conheceria todos os mistérios das águas profundas mas qual, nenhum mistério ou profundidade poderia competir com a sua alma.
Quando a garota saltasse para a liberdade um novo dia iria nascer. E ela seria feliz.
Ele sabia exatamente qual seria esse dia. Ela também.
Tinham um segredo.
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 20/09/2015
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