Os Olhos azuis da menina morena

Não se somavam mais dias, passavam se horas a correr sem medidas, nada mais podia valer naquele irrisório existir além de um pensamento corrosivo amputando-lhe as forças, do quarto onde dormia fizera toca insalubre catacumba onde jazia um ser morto vivendo sob languidas pernas que após os porres homéricos exorbitavam titubeantes pelos uivos das noites, por ruas solitárias cantava seu hino de dor, com um coração enamorado que não se lembrava do que era o ritmo que conduzia a razão. Sentia o descompasso a poucos passos da loucura cabal, pois não se media ou jamais caberia naqueles versos repetidamente declamados tão distantes da harmonia. O céu tornara-se o mesmo tom de cinza das pontas dos cigarros que se desintegravam no cinzeiro, das fumaças fétidas que rodopiavam no ar. Ar turvo oxidado pelas lembranças amargas que transbordavam lamentos. Buscou concatenar as ideias que surgissem no intervalo do desespero e até seria prudente uma escrita com tópicos de onde surgira as primeiras chamas daquele inferno, mas nada peregrinava a frente dos destroços de si mesmo sobre os monturos da própria ruína. Até que coube ao insight provocado pelo superego buscar a justificativa por tamanha peleja em desfavor da razão, um sofrimento que parecia ser de aborto inatingível Sentou-se na penumbra de um lugar qualquer onde escapava uma sombra, não sabia qual era o objeto que lhe projetava, mas não se interessou por nada de outra busca, além se omitir dos robustos raios louros da lua. Pensou em tudo que poderia ter lhe atirado dentro daquela garrafa vedada, recontou todos os passos, procurando pelos detalhes e até possíveis marcas físicas, debalde já que a desmemoria parecia algo ainda mais grave que a própria gravidade da situação em que se encontrava, deixou então aquela sombra e rumou-se para o lado limpo, lá onde a luz loura da lua se assemelhava a lanterna com foco direcionado a ele. Em breve lapso de curiosidade ergueu a cabeça e viu que sombra que lhe fizera a guarda era provocada por uma série de amontoados de caixas de papelão e latas prensadas, algo comprimido com tamanho esmero que denunciava a presença do autor bem próximo dali. Dentro da conturbada memória algo surgiria para fazê-lo mudar o local das suas preocupações, olhou mais uma vez para aquela carga organizada e buscou em giros de cabeça como se procurasse, retornando logo após ao seu estado de andarilho. Como era de rotina passou pelo mesmo bar, pediu a mesma bebida e virou na boca com a ânsia costumeira, um cigarro e um aceno para alguém no canto de pouca luz. De volta ao quarto insalubre sentou-se a cama tomando coragem para abrir o velho diário, com os dedos lubrificados pelo cuspe atirado dos beiços passou vagarosamente as folhas, olhando datas e se perguntando o motivo de tamanho padecer, naquela hora sofria duas vezes, uma por não ter se curado do sofrimento e a outra por não saber por que sofria. Notou que sobre a televisão desligada restava uma dose de bebida destilada no fundo do litro azul. Encarou pensando em não ir, mas a saliva que lhe escorria do canto da boca denunciando que naquele momento as forças de resistir lhe faltariam junto com os passos em direção ao litro se arrastaram papeis e o velho diário caiu debandando as folhas soltas e uma fotografia, dentro dela um rosto majestoso surgia com olhar de anil, seu sorriso meigo tinha dentes alvos e simpatia abundante. Ao retornar da ingestão que ainda ardia no esôfago quedou-se sobre aquele encanto, suas lágrimas pingaram copiosamente e o soluço de choro tocou-lhe a memória. Aquele era o seu sofrimento.