Vivendo das sombras - que fazíamos antes do celular?

Nós costumávamos acordar e olhar o teto, a pessoa ao nosso lado ou procurávamos pelos chinelos para calçar e ir ao banheiro escovar os dentes. Nos víamos no espelho, prestávamos alguns instantes de atenção em nossa aparência e nos sentíamos, geralmente, bem. O dia era corrido, mas dava tempo de fazer tudo que devia ser feito. Olhávamos para frente enquanto andávamos e cumprimentávamos o porteiro, o vizinho e a moça que passava por nós na rua, mas mais do que isso, nós enxergávamos essas pessoas. Nós sabíamos para quem estávamos dirigindo a palavra. Um simples "bom dia", não importa. Mas nós vivíamos, por mais que a expectativa de viver sempre seja mais alta do que, mesmo com braços esticados, nossa capacidade de alcance. Viver era isso. Era a nossa consciência da imensidão do mundo e a nossa inteira presença na realidade. Agora o que é real?

Nós costumamos acordar, apalpar o colchão, o travesseiro e o criado mudo em busca de um aparelho para verificar as mensagens não respondidas na noite passada. Não olhamos pela janela o céu - a não ser que esteja chovendo, aí então reclamamos -, não nos vemos no espelho de verdade, como quem que acompanha, aos dias, a passagem lenta e devastadora do tempo, em vez disso, tiramos selfies, como quem que quer ser acompanhado pelas redes sociais. E nos sentimos, geralmente, bem. Mesmo sabendo que nosso bem estar depende, de certa forma, de como estamos devidamente apresentados pela foto de perfil. O dia é corrido e já não há mais tempo para fazer tudo o que deve ser feito. Olhamos para baixo, não enxergamos as pessoas, as belezas e as guerras, mas estamos devidamente informados de tudo sobre cada parte do mundo, ainda que isso custe o preço de uma notícia selecionada, sensacionalista e manipuladora. Um simples "bom dia" pode ser digitado e enviado instantaneamente. Nós existimos para o mundo real, temos registros, documentos que comprovam nossa existência, mas vivemos apenas para o mundo virtual, respiramos a vida alheia e damos mais importância para quem está do outro lado da tela do que para quem está do nosso lado. Estamos mergulhamos em uma falsa realidade. Estamos habitando uma caverna com direito à glamourização e superficialidade do que é real. Estamos, como no mito de Platão, vivendo das sombras.

Fazíamos tempo antes do celular. Tocávamos uns aos outros, olhávamos nos olhos e éramos mais inteiros, mais completos. Agora tudo parece distante, frio e sem graça. Me sinto inclinada a dizer que o retrocesso seria boa coisa nesse caso. Me pergunto o quão estranho é sentir falta de uma época que não vivi, mas que com certeza me faria sentir mais livre. Às vezes o que nos prende não são as algemas, e sim a necessidade de permanecer com elas mesmo quem tenhamos a chave.