Bolo de chocolate

Anos atrás descobri a história de São Cosme e Damião.

Vida dura a minha! Sempre preocupada e ocupadíssima com a sobrevivência material, não dava atenção e nem a mínima importância para os assuntos da alma, da sensibilidade, das possibilidades de ser bom e desconhecia por completo as consequências dos dramas da nossa pequenez. Olhar pequeno o meu, justificando, quem sabe, a minha miopia para os outros, as lentes grossas em pesados óculos que jamais me abandonaram. Impossível era enxergar a beleza e a presença marcante na história dos benfeitores, sensíveis e altruístas.

Criança era adulto pequeno e pronto. Deveria rir pouco, ser comedida no comer doces e sorvetes e nem pensar em pedir alguma coisa. Vivi a infância assim, atormentada pelas dificuldades impostas pela vida, pela aspereza da dor do meu pai e por incertezas infinitas. Sabia que deveria lutar à exaustão para sobreviver, ter uma fé pela obediência e, preferencialmente, não questionar nada.

Não me lembro como descobri a história dos gêmeos, santos por vocação na arte de curar os semelhantes no corpo e na alma naquela distante Ásia Menor, hoje Turquia.

Comecei a conversar com eles, que me acolheram na sua bondade e compaixão. Em alguns momentos especialmente difíceis foram eles que me inspiraram algumas palavras libertadoras de situações imensamente complicadas e financeiramente comprometedoras.

E comecei, humildemente, a fazer os pacotinhos de balas para distribuir para as crianças a cada 26 de setembro. Passei a levar os quilos das balas mastigáveis na creche próxima, feliz e agradecendo as presenças constantes dos santos na minha jornada.

E passei a sentir uma grande proximidade emocional com essas crianças que esperam receber alguns doces, algo colorido e apetitoso. Não era apenas eu que tinha, certamente, vontade da fartura de doces. Desenvolvi uma empatia sincera, sabendo o que pensam, o quanto esperam, desejam e saboreiam aqueles eventuais nacos de bolos.

Resolvi fazer dois bolos de chocolate para acompanhar as balas de laranja e melancia.

Jamais fiz bolos com tanto carinho! Larguei a batedeira num momento e chorei, chorei muito ao me lembrar de quando o meu pai contava, rindo, mas tentando esconder a tristeza de um fato da sua infância marcada pela pobreza naquela São Paulo do pós-guerra. Contava que, certa feita, havia ganho dois pedacinhos de rocambole. Um para ele e outro para a minha tia. Ele comeu a sua fatia e depois começou a mordiscar o que caberia à sua irmã. Com sacrifício deixou um pedaço minúsculo para ela, recheado de culpa por não ter resistido à tentação e ao desejo de mais um pouco do doce.

E eu fiz os dois bolos de chocolate. Para as crianças que serão atendidas, que haverão de se arregalar com a guloseima. Bolos com cobertura e confeitos de balas de gomas coloridas dispersas por toda a sua extensão.

Comam com gosto, crianças, quem sabe em silêncio, curtindo cada fatia, com fartura, sorriso e alegria da surpresa! Sejam muito felizes sempre, mesmo que a realidade não seja assim tão risonha. Sejam sensíveis e delicadas com a vida, compreendendo inteiramente cada etapa, sabendo que as lágrimas também secam, assim como a desesperança e os conflitos existenciais. Brinquem, pulem, corram, cantem e não tenham vergonha de viver a infância na sua plenitude e singeleza. E aprendam a ser solidários, pacientes e atenciosos com as múltiplas realidades da vida.

Mas fiz os bolos também prá você, pai, que há trinta anos descansa das suas tormentosas dores e problemas financeiros. Que aí no céu, pai, você tenha uma mesa com comidas boas, rocamboles, doces variados e coloridos, quindins e caçarolas italianas e que nenhum desses doces, absolutamente nenhum, te faça mal. E que você nem fale mais isso: ”me faz mal”, pois tudo faz bem quando a paz e o equilíbrio estão, definitivamente, instalados no coração. Para sempre.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 26/09/2015
Código do texto: T5395081
Classificação de conteúdo: seguro