Atrás da janela, cantou o passarinho

Quanto mais o tempo passa, mais tenho a certeza que logo me transformarei num velho resmungão.

Piu, piu, tirim, tiririm, cantou o passarinho atrás da janela do meu quarto.

Era o anuncio da chegada da primavera.

A cidade não havia despertado, dava para ouvir o silêncio lá fora, entrecortado pelo canto do passarinho.

Abri a janela e dei de frente com ele, na galhada mais alta do pé de limão, um sabiá laranjeira, estufando o peito e cantando sem parar.

É assim que os pássaros namoram, me contou mister Google.

Piu, piu, tirim, tiririm, o bicho prosseguia piando enquanto eu passava manteiga no pão, a faca que deslizava, leve no início, movimento que fui aumentando conforme a cantoria invadia minha cabeça: piu, piu, tirim, tiririm.

Notei que o sabiá desafinou na última nota, o que me fez recordar um amigo que criava passarinhos e tinha um curió que cantava um som mavioso, mas que quando eu prestava mais atenção, parecia sobradar tristes soluços.

Curió é triste e encantador ao mesmo tempo.

De novo ouço o piu, piu, tirim, tiririm e a irritação toma conta de mim; que diabo de surda é a fêmea deste bicho que não lhe atende o chamado?

No outro dia a cena se repete atrás da janela e prossegue toda a manhã, indo até o fecho da tarde, se confundindo com o canto das cigarras, entrando à noitinha e desafiando os gatos vadios.

Se ao menos fosse um curió – pensei – enquanto ajeitava o sapato no pé, apagando a vontade de jogá-lo no bicho que não se calava; piu, piu, tirim, tiririm, o dia todo assim.

E na mania que não desgrudo de dar nome aos bichos, resolvi chamá-lo de Zezé de Camargo, que é outro cantor que me irrita facilmente.

. E não encontrando o silêncio em parte alguma, decidi fazer uns serviços de rua, ir pra bem longe da cantoria.

Mas a cidade e seus tormentos não conseguiram tirar da minha cabeça aquele piu, piu, tirim, tiririm.

Na ânsia de resolver o problema, pensei comprar uma fêmea sabiá, dá-la de presente ao danado do Zezé e restaurar o silêncio.

O Google me salva novamente, ensina que não é assim que as coisas funcionam; o macho tem que atrair a fêmea e a arma que usa é o canto.

Num breve momento de sensatez, faço uma autocrítica: que sujeito estressado estou me transformando, enfezado com o som de passarinho!

De repente estalo os dedos ao lembrar que no meio das minhas coisas velhas, que guardo até hoje, tem um estilingue.

Balanço a cabeça e me nego seguir adiante, perplexo com minha própria crueldade, logo desistindo da ideia, até porque sempre fui ruim de mira e nem quando era garoto conseguia acertar a estilingada; apontava, esticava e atirava, sempre longe do alvo.

Hoje pela manhã, mais atento, percebi que não se trata de um único pássaro, são vários.

Corro até o Google e descubro que há uma disputa entre eles: aquele que cantar mais alto e forte, ganha o amor da fêmea.

Piu, piu, tirim, tiririm, um bando emplumado prossegue assobiando sem parar, logo atrás da janela do meu quarto.

“se não pode com ele, junte-se a ele”.

Assim pensando, coloquei um banco perto da janela e fiquei escutando a cantoria dos bichos.

O curió canta melhor que vocês, eu disse, sorrindo para eles.

Piu, piu, tirim, tiririm, responderam os sabiás.