Dúvida cruel

No nosso cotidiano, fazemos julgamentos sobre o comportamento alheio baseados nos nossos preconceitos estabelecidos acerca do que observamos superficialmente, os quais, por serem precipitados, à vezes são equivocados e podem levar-nos a ações erráticas ou irracionais. Isso porque a natureza humana é mais complexa do que nossa limitada mente é capaz de perceber.

O argumento é apresentado em duas cenas inter-relacionadas, a cena dois justificando a conclusão da cena um.

Cena um:

Encontrava-me eu, no dia 10/10/2015, em um supermercado de alto padrão, tanto em produtos como em atendimento, em minha cidade, Marília, SP.

Na fila da área dos “caixas rápidos” (até 20 produtos) encontrei um ex-colega na empresa TELESP (atual Vivo) em que trabalhamos e na escola em que fizemos Engenharia Elétrica, logo à minha frente e o primeiro da fila.

Enquanto ele era atendido pela caixa que o chamou, tentávamos trocar as informações pessoais quando fui chamado por outra caixa que estava disponível e interrompemos a conversa. Passei meus dois produtos, a caixa registrou. Vi na tela do terminal o valor de R$ 14,10 (quatorze reais e dez centavos). Dei à caixa uma nota de R$ 20,00 (vinte reais) e, ao verificar os dez centavos quebrados no valor, busquei na carteira e entreguei-lhe uma moeda de dez centavos para facilitar-lhe o troco, enquanto fazia menção de tentar reatar a conversa com meu ex-colega, que estava ao lado.

A caixa devolveu-me apenas cinco reais. Como esperava seis reais, conferi o valor na tela e perguntei à caixa sobre o valor que estava sendo cobrado. Ela imediatamente desculpou-se pelo engano e deu-me a moeda de um real que faltava.

Rapidamente veio-me à mente se houve intenção dela de surripiar-me aquele um real sorrateiramente (possivelmente incentivada pela sua percepção da minha distração com a conversa com meu ex-colega) ou se fora de fato um engano real dela. A dúvida veio-me porque, apesar do valor baixíssimo naquele evento pontual (quem vai se arriscar tanto a um ato tão vil por causa de um real?) é possível que aquela caixa, realizando esse ato diversas vezes com os vários clientes que atende diariamente, possa acumular um montante razoável com os muitos pequenos reais ou centavos que surripiar ao longo do tempo. Lembrei-me de uma vez, num cinema decadente em São Paulo, da caixa claramente tentar me surripiar alguns trocados no troco.

Se assim fosse, deveria denunciá-la à empresa para que a advertisse ou mesmo a demitisse, para salvaguardar os muitos clientes que ainda seriam prejudicados por causa de seu expediente imoral.

Mas esse ímpeto moral deveria ser contido pelo seguinte motivo. Eu não tinha certeza de que fora realmente intenção sua me prejudicar ou de que fora de fato um engano de sua parte. Se a denunciasse poderia estar cometendo uma injustiça terrível só por causa de uma suspeita subjetiva de minha parte e prejudicá-la em sua vida pessoal e profissional.

Dúvida cruel.

Mas poderia ainda me questionar: uma profissional na sua área (atendente de caixa) teria o direito de cometer erro tão grosseiro?

Eu mesmo respondo: sim, teria. Isso porque nenhum profissional, por mais competente que seja, está imune ao acaso de erros pontuais em sua vida profissional. Porque devemos vasculhar nossas próprias vidas e procurar momentos nelas em que passamos por isso, em que cometemos erros banais e inexplicáveis, a despeito da nossa capacidade. Em que batemos a cabeça para procurar as razões que nos levaram a um erro absurdo, que, justamente pelo fato de estarmos tão seguros de nossa capacidade, torna-se mais absurdo ainda. Exemplifico com a cena dois.

Cena dois:

Em algum momento entre 2008 e 2014, estou na biblioteca da universidade (UNESP campus de Marília) na qual cursei uma graduação e um mestrado em Filosofia.

Nessa biblioteca, os alunos têm livre acesso aos livros nas estantes, podendo pegá-los para estudá-los dentro da própria biblioteca ou para emprestá-los, registrando-os na área de empréstimos. Por isso, há um dispositivo eletrônico na saída que toca um alarme estridente e escandaloso se o aluno sai com um livro da biblioteca que não foi registrado na área de empréstimos.

Fiquei sabendo do dispositivo, naquele momento, por causa de um erro grosseiro meu. Distraído por causa de algum pensamento mais concentrado talvez relacionado a algum problema do curso, estava saindo com um livro esquecendo-me totalmente de seu registro na área de empréstimos.

Assustei-me com o alarme estridente e me vi alvo dos olhares espantados de todos os presentes, alunos e funcionários.

Envergonhadíssimo, dirigi-me rapidamente à área de empréstimos e pedi mil desculpas.

Senti, porém, naquele momento constrangedor para mim, que nenhuma explicação e nenhuma desculpa seriam suficientes para dissipar nas mentes daquelas pessoas presentes a suspeita bem razoável de que eu, na verdade, estivesse pretendendo surripiar aquele livro. Complicar-me-ia ainda mais se eu dissesse que não sabia daquele alarme, pois, desse modo, a suspeita se tornaria mais tangível ainda.

Para minha defesa, devo dizer que esse evento, atravessar distraído a saída com um livro a tiracolo e o alarme tocar, aconteceu de novo comigo por uma segunda vez, já eu sabendo da existência do alarme. Daí que o erro dessa segunda vez foi mais absurdo ainda do que da primeira vez, pois ele foi cometido quando eu já havia passado pela punição de ter sentido uma vergonha terrível da primeira vez.

É por isso que não pude denunciar a caixa do supermercado. Que, caso seja inocente, por mais que queira explicar seu engano, jamais poderá convencer qualquer um de nós de que o cometeu apenas pelo fato de que todos nós, por mais preparados que estejamos, estamos sujeitos, pela nossa natureza falível, ao acaso de inapelavelmente cometer equívocos absurdos e inexplicáveis. Como aconteceu comigo.

Post Scriptum 1: A Elizabeth, no comentário abaixo, deduz uma hipótese bastante plausível para o que ocorreu com a caixa do supermercado, o que me fez refletir um pouco mais sobre o assunto. De fato, a caixa pode ter errado pela tecnologia que avança e se imiscui cada vez mais na vida de todos. Ao reduzir tanto nossas operações mentais, pode a tecnologia estar nos "emburrecendo"? Como Elizabeth disse, a própria máquina que registra o valor da compra, caso a compra seja paga com dinheiro vivo e a caixa inserir o valor deste, faz a operação aritmética para dar o valor do troco e a caixa só precisa lê-lo na tela, sem precisar fazer nenhum exercício mental. Percebi que a caixa não registrou na máquina o valor pago em dinheiro de R$ 20,10 (vinte reais e dez centavos) para saber o troco, talvez confiando em si mesma para fazer a conta e se deu mal, devido ao desuso nela dessa prática mental. Também contribui para esse desuso do cérebro para contas mentais o uso cada vez mais disseminado nas transações comerciais de cartões de débito e crédito, no lugar de dinheiro vivo (eu próprio hoje só uso o cartão de débito, embora tenha feito uma exceção no caso relatado).

Um outro exemplo de como estamos acomodando nossos cérebros está na tecnologia presente nos atuais telefones celulares. Antigamente, para chamar os telefones favoritos, precisávamos digitar os números e registrá-los na memória, através da qual os resgatávamos. Agora o celular registra em um arquivo os números dos telefones favoritos e os vincula aos nomes de seus portadores, exigindo do usuário apenas um clique sobre o nome que se deseja contatar. Constatei pessoalmente isso pelo que aconteceu com uma irmã minha, que, ao autorizar que fizessem uma limpeza em seu celular, perdeu todos os números dos telefones registrados e ficou perplexa quando precisou me chamar e percebeu que não sabia o número do meu telefone, apesar de falar com certa frequência comigo.

Post Scriptum 2: Após assistir, em 26/05/2021, ao filme “Eu, Tonya” (EUA, 2017, de Craig Gillespie), lembrei-me deste texto e voltei a ele para acrescentar esta nota. Isso porque o filme conta uma história real absurda que exemplifica o tema à perfeição. A protagonista Tonya Harding, uma jovem e promissora patinadora artística norte-americana em 1994, tem sua carreira destruída ao se tornar alvo da suspeita de todo o país, a de supostamente ter participado ou estar ciente de um atentado armado por seu marido, Jeff Gilloly, contra sua rival Nancy Kerrigan (que teve o joelho direito atingido por um bastão lançado por um executor contratado). As duas iam disputar a Olímpíada de Inverno de 1994, na Noruega. Após descobertos os responsáveis pelo crime, devido às suas trapalhadas, o julgamento sobre a possível participação de Tonya no caso foi postergado para depois da Olimpíada, para que ela pudesse participar desta. Sua rival, recuperada, ganhou a medalha de prata, e ela, Tonya, o oitavo lugar. Todo o imbróglio ocorrido com as duas pode ter influenciado nesses resultados. No julgamento que se realizou, apesar de toda a veemente negativa de Tonya de ter participado do crime e a sua alegação de que tudo fora arquitetado apenas por seu marido, os jurados não se convenceram, julgaram-na culpada e a baniram para sempre do esporte que a trouxera para a fama. O próprio filme apresenta vários pontos de vista contraditórios (principalmente de Tonya e do marido), deixando a cada espectador fazer seu julgamento sobre a culpa ou inocência de Tonya. Assim, a verdade absoluta sobre Tonya Harding ficou incógnita para sempre.

Outro filme que levanta brilhantemente a questão da insolubilidade de versões é ”Rashomon” (Japão, 1950, de Akira Kurosawa).

Referências para Post Scriptum 2:

Revista Veja, artigo “A confusa verdade do filme ‘Eu, Tonya’”, atualizado em 27/05/2021, publicado em 23/02/2018

https://veja.abril.com.br/blog/e-tudo-historia/a-confusa-verdade-do-filme-eu-tonya/

https://www.magazine-hd.com/apps/wp/tonya-harding-nancy-kerrigan-eu-tonya/3/

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 14/10/2015
Reeditado em 07/05/2022
Código do texto: T5414214
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