Aconteceu lá no passado distante de minha adolescência – sabe que você olhando para mim este passado não parece tão distante assim. Não consegui conter os risos – parece distante sim. Bem, mas foi em minha adolescência que um pequeno distúrbio, um quase trauma, começou a acompanhar todas as fases seguintes de minha pacata vidinha. Trata-se de uma pergunta que ultrapassa os limites da vaidade e da auto-estima: Com que roupa eu vou? Assim, tal e qual a música de Mestre Noel. Vamos ao “case”:
Estava eu disputando uma homérica pelada de rua, quando fui interrompido durante um drible – tentativa, vai – mas, quando fui interrompido pelo grito de minha desesperada avó:
 
-     Tome garoto, tome esse dinheirinho para você comprar algo que lhe seja útil. Tome, são cinqüenta cruzeiros.
 
Cinqüenta cruzeiros! Não era toda hora que caía do céu uma fortuna dessas. Pensei imediatamente em guardá-los em minha Caderneta de Poupança. Mentira! Pensei imediatamente em como gastá-los bem. Gastá-los bem não significava necessariamente gastá-los com alguma coisa útil. Decidi comprar um CD. Que CD! Fui comprar um Compacto – lembram-se? Pois é, um “vinilzinho” com Lado A e Lado B. Apenas duas músicas. Corri então para uma loja a fim de obter o meu objeto de desejo. Posso citar a loja, pois a mesma não existe mais: Ultralar – lembram-se? Continuemos...
Um amigo meu fez questão de me fazer companhia . Fomos os dois trajando um short, chinelos de dedos, camiseta e alegria. Sim, jogávamos uma pelada na rua e nossas indumentárias não cobriam corpos assim, digamos, muito limpinhos. Mas fomos assim mesmo. Chegamos à loja sem saber ao certo o que queríamos e sendo assim, iniciamos uma busca frenética por entre os diversos títulos à disposição. Todavia, antes mesmo que pudéssemos escolher aquele disco que nos alegraria após a pelada, eis que a atendente da seção de discos houve por bem chamar a polícia, pois achava que diante de seus discos dispunham-se dois delinqüentes assaltantes. Segundo a moça da loja, foi nossa vestimenta que a motivou a cometer tal ação que posteriormente lhe proporcionaria um belo puxão de orelhas por parte do gerente da loja. Pois é, um short, uma camiseta e um par de havaianas naquela época representavam o arquétipo de pequenos ladrões. Que outra roupa adolescentes que jogavam bola na rua deveriam estar usando? Não faço a mínima idéia. Mas esse fato tornou-se marcante no decorrer de meus dias. Puxa, fui parar numa delegacia e tive de passar pelo constrangimento de ser confundido com um ladrão no trajeto da loja até a porta da “cadeia”. “Que coisa horrível!” - Por quê as aspas? Essa frase não foi minha, mas de minha avó diante da cara de espanto do delegado. E foi assim, por causa da roupa que usava fui parar no xilindró.
Hoje as coisas não são muito diferentes. Diferentes são os trajes que uso e a quantidade de rugas que acompanham os meus cabelos brancos além das dores em minhas juntas depois de cada pelada. O que não é diferente é a preocupação que ainda persiste toda vez que tenho de escolher meu traje para determinada ocasião. Por exemplo, invariavelmente eu preciso trabalhar de terno. Nada demais, a não se o calor insuportável que sentimos no Rio de Janeiro e mesmo assim temos a cara-de-pau de usarmos este tipo de indumentária. Entretanto, todos já estamos acostumados a ver gente de terno pra cima e pra baixo, fazendo dezoito ou trinta e oito graus. Mas eis que precisei visitar um cartório um pouco afastado do centro da cidade. Naquele dia eu estava de terno. O Ônibus começou a passar em cada buraco quente... As pessoas que subiam na lotação tinham cada fisionomia... Que coisa horrível! – Esta foi sem aspas, foi minha mesmo. Comecei a rezar baixinho. Eu os estava julgando pela roupa que vestiam e pelos seus aspectos e trejeitos. Que coisa feia! Senti-me em apuros. Um pensamento me levou a outro: Uma Bíblia! Era tudo o que eu precisava naquele instante. Sim, estivesse eu de terno, com uma Bíblia debaixo dos braços, o que seria eu? Um Pastor, ora! Sujeito respeitado por aquelas bandas. Novamente uma roupa estava me levando a uma situação delicada. Graças ao Bom Deus nada de mais grave aconteceu, além das unhas que roí e dos músculos que contraí.
Um terno... Uma vestimenta que nos faz passar despercebidos no centro da cidade, mas causa um quase pânico noutros lugares não muito apropriados. Pois é, sem contar as situações onde um terno pode lhe abrir portas. Infelizmente isso também acontece. Outro dia precisei retirar uma documentação junto à repartição de um órgão público – essa repartição não será citada, pois ao contrário da Ultralar, ela ainda existe, sempre existiu e existirá por muito tempo. Lá fui eu. Calça jeans, camisa de manga curta – às vezes tenho a exata noção do Estado onde vivo e da temperatura normal que acomete este Estado. Mas lá fui eu num traje esporte não muito fino fazer minhas perguntas e solicitações aos nossos solícitos funcionários públicos. Olha, não consigo lembrar o número de filas para as quais fui conduzido a fim de obter aquilo que solicitei. Que coisa horrível! – mais uma sem aspas. Se houver outras, também não as terão. Mas foi um dia de cão! Sim, no final do dia obtive meus esclarecimentos, precisava agora juntar toda a documentação exigida para voltar à minha “via crusis”. Duas semanas depois eu voltei.
Fazia muito tempo que eu havia estado naquela repartição. Tive de procurar o fio da meada desde o seu princípio. Naquele dia eu estava de terno. Cheguei atrás do balcão – há sempre um balcão – olhei e identifiquei o rapaz que me atendeu na vez anterior. Ele não. Ele não me identificou. Peguei minha documentação, entreguei a ele enquanto lhe perguntava como fazer para obter o documento desejado. Ele pegou, olhou, me olhou e sumiu pela  porta que se encontrava atrás de sua mesa. Puxa, já havia vinte minutos que o rapaz sumira com meus documentos! Tudo isso para responder a uma perguntinha?! Que nada! Vinte minutos foi o tempo que o rapaz levou para retornar à minha presença com toda a documentação que eu precisava retirar naquele órgão. Tudo por causa de um terno. Não é ótimo? Começo a entender porque os cariocas usam ternos no calor escaldante. Que fique claro e avisado tal e qual fazem lá no Ministério da Saúde: Dentro do panorama sócio-político-econômico-sem-decoro-com-apagões dos dias atuais, usar terno em Brasília pode atrair atiradores de ovos e algemas – ao menos deveria.
Infelizmente - e acho que esse “Infelizmente” não serve só a brasileiros, mas a todo o planeta - não somos discriminados apenas pela cor de nossa pele; pelo continente onde nascemos; por nosso saldo bancário; por nossa opção sexual, somos discriminados também pelos trajes que usamos. Quer correr o risco de ser confundido com um marginal, então ponha um shortinho, uma camiseta e umas havaianas – eu lhe mandaria por também uma camisa do Flamengo, facilitaria, mas sou Rubro-negro e não ficarei aqui fazendo galhofa com meu time. Quer ser bem atendido e, invariavelmente, chamado de doutor, ponha um terninho básico. Pode ser daqueles de R$99,00, quase ninguém repara. Mas não vá usar este terninho em Brasília sem estar acompanhado de seu advogado e de seguranças, isso pode lhe custar uma apariçãozinha no Jornal Nacional.