A Jumenta
 
Leitores, costumamos dizer que vida boa é a dos outros, especialmente dos habitantes do Olimpo. Os deuses ficam por lá, comendo ambrosia e bebendo néctar, curtindo a imortalidade sem que nada os perturbe.
Epicuro, em uma de suas cartas escreveu que, se os deuses existissem, com os homens não se importavam. E não se importam mesmo não mas, quando um deles está aborrecido, toca a baldear a vida da gente.
É o caso de Zeus, o Pai dos deuses. Casado com Hera mas raparigueiro que só ele, adora seduzir uma mulher.
Um dia, nosso venerando Zeus estava sentado em seu trono no Olimpo, cheio de amor pra dar. Mas queria seduzir uma mulher virtuosa, que não se entregasse à sua concupiscência tão facilmente.
Abriu as nuvens e deu um golpe de vista no globo terrestre. Acelerou o movimento de translação e seus olhos divinos avistaram uma formosa morena indo buscar água no açude. Que beleza de mulher! Pequenina, tez macia, cabelos negros e longos, olhos castanhos resguardados por sedosos cílios. Ai ai. Precisava colher aquela flor. E chinelou.
Como todo amante na cegueira da paixão o filho de Cronos não reparou no que estava se metendo. tivesse olhado o mapa e lido um pouco a história da região saberia que estava indo ao Sertão do Ceará, terra de cabra macho que dá o maior valor matar um e de mulher faceira que seduz naturalmente até às pedras da estrada.
 
Apois. Zeus chegou bem na hora do calorzão, pelas três da tarde. A Rosa, mulher casada e honrada pela qual ele se embeiçou, estava enchendo as latas d'água e pendurando na cangalha de uma jumenta. Cada vez que ela colocava mais peso, fazia um carinho na jumentinha e o deus ficou doidinho pra ganhar um cafuné também.
Aproveitou que a Rosa foi encher outra lata d'água para transformar a jumentinha em rolinha e tomar o lugar dela.
Quando a Rosa trouxe outra lata d'água e fez o costumeiro carinho na jumenta, sentiu que o animal se tremeu todo. Achou estranho, talvez a bichinha estivesse doente.
Já bastava de peso. Olhou para os lados, não avistou ninguém e tirou o vestido de chita para tomar banho. E a jumentinha babando, prestes a morrer do coração. Quando ela soltou os longos cabelos recendeu um cheiro de juá e Zeus delirou de paixão. Como era linda aquela morena, pelo Estige!
Estava tão entretido com o banho da jovem que nem viu um amarelinho empombado se achegando por trás. Era o Zeca Leiteiro, indo satisfazer sua luxúria secreta por jumentas.
Quando Zeus deu fé foi aquelas duas mãos grossas de cabo de enxada alisando suas ancas. O deus olhou para trás e viu um caboclinho feio pra danar, um sorrisinho de dentes de cabrito, tirando o cinto e desabotoando a calça.
Oh, rapaz. Pra que. O marido de Hera ficou muito indignado com a ousadia do cabra. Deu-lhe um coice tão seguro que o Zeca foi cair de cu trancado a duas léguas dali.
Nisso a Rosa voltou do banho, linda e desejável, aquela boca carnuda que só ia dar pra radiola de Zeus.
Pegou a jumenta pelo cabresto e foi para casa, o deus rezando pra noite chegar logo, podia modificar o tempo mas ao natural era mais romântico.
Por aquela estrada poeirenta, seguida pela jumentinha singular que não tirava os olhos do seu corpo bem-feito, a Rosa ia pensando no Bastião, seu marido. Certo que ele gostava de beber, jogar e raparigar mas tinha uma pegada de endoidecer. Ô homem gostoso. E Zeus, lendo os pensamentos dela, achou graça achando bom, a morena era taradinha.
 
Ao chegarem no terreiro de casa a Rosa entrou e Zeus, em sua onisciência, caçou o marido dela pelas redondezas. Estava num cabaré, o sem-vergonha, com uma esposa tão formosa dentro de casa. Dextá; convocou as Musas e mandou que elas, transformadas em raparigas, fossem entreter o Bastião. Nem foi preciso chamar duas vezes, as nove beldades chegaram com suas peles alvas, cabelos ruivos e olhos azuis, para delírio do marido da Rosa. Ôs rapariga bonita da gota serena! Daquela vez o Totonho, dono do cabaré, tinha se superado.
Quando a rapariga fixa do Bastião saiu do banheiro e viu aquela ruma de mulher em cima do macho dela, abriu a boca para dizer um nome mas não terminou, Euterpe transformou-a em uma lagartixa e Thália caiu na risada, seu riso cristalino como as fontes do Hélicon que quase matou o marido da Rosa de prazer.

Enquanto isso, no Olimpo, Hera procurava pelo marido com ódio no coração, decerto já estava aprontando, o fi de chocadeira. Viu a imagem do globo suspensa e localizou o marido num lugar invocado, diabo era aquilo, um aceiro de mato? Bonito que só, era noite de lua... Mas que marmota era aquela, Zeus se transformando em um homem alto, moreno e barbudo? Não, tava errado, "ah! condenado das costa oca, tu me paga!", e a deusa enfurecida se mandou no encalço do marido.
Quando Hera chegou no terreiro da casa de tijolo ouviu foi um risadeiro, uns ais, "Bastião, hoje tu tá tão safadinho!"
Ah, mas não prestou não, a poderosa Hera derrubou a porta com uma pesada e saltou como uma suçuarana em cima do Zeus-Bastião. Peia pra cinco o deus levou sozinho. E a Rosa sem entender nada, seria aquela a rapariga que o marido tinha na cidade? Puxou a deusa pelos cabelos louros e encheu-lhe a cara de tapas, as duas se pegaram no meio do terreiro e Zeus aproveitou para evadir-se com as musas de volta ao Olimpo.
A Rosa deu em Hera até cansar o braço e a deusa, para vingar-se, transformou-a em jumenta.

De madrugada o Bastião enterrou dos pés sentindo uma coisa fria em cima dele, "figa, uma lagartixta!" Rebolou o bicho longe e procurou as raparigas novas, ô curdiacho, será que tinha sonhado? E a Raimunda, onde tinha se socado aquela militriz? Ah, que fossem todas se lascar, cabra macho não se fia em rapariga. Vestiu o gibão e foi para casa mas não encontrou a Rosa, a desgramada, só podia ter ido dormir na casa da fedorenta da mãe dela. Depois iria buscá-la na casa da sogra e dar-lhe umas panadas de facão mode ela respeitar o homem que tinha dentro de casa. Mal sabia ele que a Rosa estava ali, amarrada no pé de algaroba, o amor mal-feito reclamando o que lhe era de direito.
Nisso ouviu-se um estalar de galhos secos na caatinga. Era o Zeca Leiteiro, recuperado do coice da tarde e ainda mais apaixonado pela jumenta que se fazia de difícil.

Quando a Rosa deu fé foi aquele par de mãos grossas de cabo de enxada alisando suas ancas. Fechou os olhos e sorriu, afinal nem tudo estava perdido.
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 25/10/2015
Reeditado em 15/07/2016
Código do texto: T5426703
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