Companheiros de Aluguel

A primeira vez que visitei a nova casa de aluguel onde iria morar sabia que ali sempre teria companhia. Percebi isso quando deixei um pedaço de pastel em cima da pia da cozinha, enquanto percorria os outros cômodos para conhecer minha futura residência, e ao voltar não o encontrei mais lá.

Vasculhei novamente a casa a procura de alguém, conferi a porta fechada e a chave no meu bolso e concluir o já sabido: não havia ninguém ali. Até que visualizei um caminho de carne e tempero que se findava, ou se seguia, em um buraco na parede próximo à porta do banheiro.

O intruso era um rato. Ou será que o intruso era eu e ele o inquilino oficial? Na dúvida liguei no mesmo instante para a proprietária do imóvel e a ouvir dizer com a maior naturalidade que se esqueceu de mencionar o fato, que aquilo era um problema antigo, mas que estava disposta a contratar a dedetização se eu pagasse 100 reais a mais no primeiro mês. Recusei de imediato a oferta e fiz uma contraproposta:

– A senhora desconta 20 reais do aluguel durante os próximos cinco meses e eu mesmo me encarrego de solucionar o problema definitivamente.

A veia aceitou na hora! Fiquei meio confuso com a rapidez, nunca fui bom de negociar, mas a alegria de ter encontrado uma casa com aluguel baixo e ainda conseguir um desconto superou. Fechei o negócio e no mesmo dia já desembarcava, de um pequeno caminhão velho, minhas poucas tralhas.

A casa na verdade era um sobrado. Embaixo ficava a sala, a cozinha e o banheiro; em cima dois quartos pequenos. Como morava sozinho, um deixei mesmo como quarto e no outro montei um improvisado escritório, ou quarto de bagunça, se preferir.

Na primeira noite que dormi na casa descobri que teria muito trabalho pela frente. Depois de um intenso sobe escadas, desce escadas, empurra móveis, arrasta móveis, leva caixa, deixa caixa, cair na cama como pedra e me entreguei a um profundo sono. Lá pra tantas horas da madrugada, porém, um barulho estrondoso ecoou por toda casa. Despertei assustado a procura de uma barra de ferro para atacar os ladrões. Ainda no escuro, com os olhos arregalados em qualquer direção, imaginando ser a da porta, respirei fundo e ouvir uns cochichos embaraçados. Eram ratos. Bati com força o pé no chão, eles cochicharam mais uma vez algo como “vixe, ele acordou”, e correram desesperados pelo forro do quarto. Trotavam tão alto que pareciam ter pernas de cavalos.

Aos poucos fui descobrindo com quem realmente estava lidando. Não faço ideia de quantos eram, mas creio que era um grupo muito grande, muito grande mesmo. Assim fui criando estratégias para vencê-los, só que uma por uma fui sendo derrotado.

A primeira delas foi clássica. Espalhei pedacinhos de pães e restos de comida, batizados com veneno, por toda parte, convicto de que no dia seguinte chutaria corpos e mais corpos pela casa. Resultado: nenhuma comida, nenhum pão, nenhum corpo. Até esperei alguns dias para ver se eles morreriam em outros lugares e nada. Os bichos estavam imunes ao veneno.

Na segunda tentativa optei pelas ratoeiras. Armei-as com cuidado, deixando todas com sensibilidade máxima e as espalhei em pontos estratégicos, cada uma com um pedaço chamativo de queijo. Ao amanhecer fiz a ronda e a cada novo ponto, nova decepção. Em todas as ratoeiras só um minúsculo pedacinho de queijo vingara e nenhuma delas havia desarmado. Fiz um teste utilizando palitos de fósforos e as armadilhas chegavam dar cambalhotas no ar devido à violência do golpe. Se atingisse um dedo humano o arrancaria na hora.

Na noite seguinte arrumei novamente as minhas armas fatais, desta vez, usando somente os pequeninos pedaços de queijo. A fome bateria agora eles teriam de arriscar ainda mais. Não haveria escapatória. Pior que houve! Como se aquele fosse o limite de todos, nenhum deles tocou em nada. Ainda assim repeti a tática por mais alguns dias na esperança de que eles se rendessem à tentação.

Numa dessas noites, logo depois de eu me deitar ouvi um estalado forte e um gemido alto. Tinha funcionado! Sem me levantar, ouvi a vítima chiando de dor, a morte era questão de tempo. Tapei os ouvidos com o travesseiro e dormi sossegado, sonhando com minha primeira vitória. Pela manhã acordei motivado, procurei todas as ratoeiras e apenas uma estava desarmada, porém não havia nenhum rato nela. Intrigado, olhei mais de perto e vi manchas de sangue pelo chão e na ratoeira. O desgraçado conseguiu se safar depois de um golpe fatal.

Eu tentei de tudo: vassoura, porrete, barra de ferro, facão... ficava a espreita horas para ver se algum aparecia, e quando em vez eles cruzavam algum cômodo da casa e eu com arma em punho corria para o ataque. Os bichos eram velozes e sumiam com a habilidade de um ilusionista. Era entrar atrás de algo que ninguém mais achava. Foi nessa caçada que depois de alguns meses, quase desistindo do resto de desconto e chamando um dedetizador que consegui matar um deles.

Assim que abri a porta, chegando do trabalho, vi aquele monstrengo em cima de uma das panelas sobre o fogão. Ele havia tirado o pano de prato, afastado a tampa e enfiado a cara arroz que eu tinha preparado antes de sair. Quando avistei aquele bicho sujo e peludo do tamanho de um preá adulto devorando meu almoço, tive um ataque subido de raiva. Descalcei um dos sapatos, era uma botina de EPI, daquelas de bico de ferro, assobiei bem baixinho e o vi levantar a cabeça e olhar pra trás com cara de assustado. Não deu outra. Ignorei o risco de derrubar todas as panelas, de ficar com fome e de fazer um estardalhaço na vizinhança, e atirei, com a força de um índio arremessando sua lança, e a bota atingiu em cheio a cabeça do infeliz que bateu junto com a tampa da panela e o sapato na parede. Corri para cima do inimigo e ainda desferi dois outros golpes na cabeça a sangue frio. O matei em cima da tampa do arroz. Joguei os dois fora.

Matar aquele rato foi para mim uma espécie de troféu. Ri a toa durante todo o dia. Mas aos poucos fui notando algo inusitado: naquela noite não houve barulho de nenhum outro rato, e assim foi também nas duas outras noites. Nem mesmo durante o dia eles apareciam. Deixei comida sobre a pia, nada. Ficava em silêncio total esperando algum cochicho e nada. Comecei a sentir um vazio na casa e deduzir que aquilo se tratava de um período de luto. Sabia que deveria respeitar, assim como sabia, também, meio que por instinto, que em breve eles voltariam com tudo. Foi o que aconteceu.

Daí por diante resolvi optar por um novo plano, bem mais ousado. No dia em que completou três meses de aluguel, cheguei em casa com o dinheiro na mão e decidido a por um fim naquela bagunça. Abri a porta, convicto, e fui direto para a cozinha.

– Pessoal, pessoal! Eu sei que vocês estão por aí. Pessoal! Eu to querendo falar com vocês. Fiquem tranquilos que estou desarmado hoje. É só um papo. Vocês Entenderam?

Parei um pouco até ouvir uma conversa bem baixinho entre eles, em seguida ouvir um barulho coletivo vindo da dispensa, do forno do fogão, do forro e das gavetas do armário. Silêncio geral. “Eles se sentaram” – pensei.

– Pois então, eu aluguei essa casa para viver em paz. Quem paga o aluguel todo mês aqui sou eu – joguei o dinheiro sobre a mesa e rapidamente peguei de volta, ainda não dava para confiar. – Só estou pedindo um pouco de colaboração, pode ser? Poxa, galera, vocês comem minha comida toda, não espera nem e jogar no lixo, comem na panela mesmo! Vocês furtam minha dispensa e ainda faz a maior algazarra de noite, aí não dá, né? – O silêncio prosseguia – Eu não vou mais tentar matar vocês, beleza? Mas vocês têm que me ajudar, pô! Vocês entenderam?

Um chiado relâmpago ecoou. Era um sim. Abri uma sacola de pão dormido, coloquei no canto da cozinha e gritei:

– Depois que eu sair pode levar. – Virei as costas e só ouvir o som da cavalgada. Eles eram mesmo grandes!

Por fim, as coisas não mudaram assim tão facilmente. Mas aos poucos fui educando a turma. Era eu estar na cozinha que alguns engraçadinhos apareciam em cima do armário.

– Agora não, né? – Eles sumiam.

Outro dia ao descer a escada ouvi um barulho vindo da cozinha. Eles estavam arrastando o fogão do lugar. Tive que implorar:

– Pessoa, vai com calma aí, pelo amor de Deus!

Na madrugada, de vez em quando, tinha que acordar para pedir silêncio.

– Gente, isso não é hora não. Cala a boca aí que eu tenho que dormir. – A contragosto eles obedeciam.

Mas também foi fazendo minha parte. Sempre quando ia sair pela manhã eu deixava a refeição deles.

– Galera, coloquei rango na lixeira, come lá, mas vê se não vira a lixeira, por favor.

Assim fui levando a vida na casa de aluguel com meus colegas inquilinos. Passaram-se os cinco meses, o desconto acabou, e eu fiquei lá mesmo assim. Quando a dona me perguntou sobre o problema eu afirmei categoricamente que a situação estava resolvida. Porém não contei nada para ela, afinal, acho que ela não acreditaria que uma noite dessas, enquanto assistia a um filme na televisão da sala, achei dos ratos brutamontes deitados num tapete próximo aos meus pés. Quando os vi, dei um pulo assustados e eles nem se mexeram, só olharam para mim e disseram com cara feia:

– Fica quieto aí, mano!