A Coalhada

 
Leitores, um fato: pobre é a treva.
Não, não estou a falar de pobre em questões financeiras, existe muita gente sem dinheiro que tem o coração de ouro, é boa, generosa, educada. Falo dos pobres de espírito, dos mesquinhos que fazem questão até dos dez centavos da bodega se o bodegueiro não tiver troco e oferecer bombom.
Pior que aconteceu também comigo mas eu tenho uma boa justificativa.

Um dia fui comprar não sei o que num desses supermercados grandes e a moça do caixa fez questão de três centavos que ficou faltando para inteirar o pagamento. Aí eu disse "oxe, três centavos? Tu não podes deixar passar?", e ela "não, porque senão no final do expediente vai ficar faltando no meu caixa".
Oh, rapaz. Pra quê. Fiquei indignada. Derramei tudo que tinha dentro da bolsa, maquiagem, livros, documentos, até encontrar uma moeda de cinco centavos. Aí foi a hora da minha vingança. Eu disse "tome, minha filha, agora me dê meus dois centavos de troco!" Ela disse "senhora, eu não tenho moedas de um centavo!" e eu disse "te vira, tu não fizeste questão de três?" A criatura rodou todos os caixas atrás do meu belo troco. Naquele tempo existiam moedas de um centavo. Achou e me pagou. Marminino.

Apois, estou fugindo do assunto: pobre.

Certo que não é de bom tom chegar nas casas dos outros na hora das refeições sem ser convidado. Mas às vezes acontece e não é o caso de uma pessoa generosa recusar-se a dividir o pão com a visita.
Uma amiga minha esteve em Minas e conheceu a casa de Guimarães Rosa, disse-me que havia lá uma mesa de jantar muito antiga e invocada, com gavetas. E eu disse "laivai, gavetas?" A amiga então me respondeu que era para quando chegasse alguém na hora das refeições os moradores esconderem os pratos.
Eu achei o cúmulo dos absurdos, pior que uma conhecida do interior que escondeu a panela de batatas para não oferecer à visita mas teve o azar de botar a panela de barro quente, fagulhando, em cima de uma estopa, resultado, quase queimou a casa inteira.
Mas o caso da coalhada aconteceu lá em Tauá.
Foi assim:

Um certo casal conhecido de um casal amigo meu era metido a fino sem ser. Moravam em uma casa grande, com um corredor imenso mas não havia luz elétrica, então para se movimentar à noite só com uma lamparina na mão.
Certa noite, minha amiga e o marido foram visitá-los de surpresa, estavam na cidade e sentiram saudades das amizades.
Nessa noite a mulher fina, elite pé-rachado, tinha feito coalhada para ela e o marido. Sabedora da regra de não esconder as comidas, ofereceu do manjar aos meus amigos. Eles disseram que não, obrigado, nem gostavam mas a mulher insistiu tanto que eles acabaram aceitando. Comeram um pirex cheio, dois, gostaram, estava uma delícia a coalhada. E a mulher fina só servindo, o rosto mudando de amável para zangado, furioso e enfim puto.
Quando foi lá pela quarta rodada, o marido da minha amiga foi ao banheiro. Como eu disse, o corredor era escuro e a lamparina estava na sala. Aí calhou de a mulher passar e sussurrar para ele, pensando que fosse o seu marido:
"Disseram que não gostavam de coalhada, avalia se gostassem, esses mortos de fome!"
O marido da minha amiga, muito discreto, não disse nada, deu meia-volta, pegou a esposa pelo braço, despediram-se e foram embora, nunca mais quiseram saber daquele povo.
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 23/11/2015
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