Gaveta de palavras

Eu tenho uma gaveta solta guardada dentro do meu armário. Ela está cheia de pedaços de papéis escrito tudo o que eu não consigo dizer. Sou mais do que a prova de que as palavras ficam diferentes quando passam a morar dentro da gente. O acúmulo começou quando o suspiro engoliu a voz e a minha boca decretou silêncio. São as palavras que me travam, eu soube. São as palavras que, com maestria solitária, filtram o que vai e o que fica. Às vezes é por medo que não falo, às vezes por precaução, às vezes por falta do que dizer. Mas, às vezes, é porque nem de todas as coisas a palavra é mãe. Nem de todas as verdades a palavra tem domínio. Nem todos os sentimentos a palavra é capaz de descrever. E não falo de alexitimia. É muito mais do que a dificuldade em verbalizar emoções e sentimentos. Porque talvez a palavra só consiga dar conta de uma conversa interessante, de um poema de fazer balancê, de uma dramaturgia de Tennessee Williams, mas não de tudo. Tudo é muita coisa. E certas coisas não cabem à palavra expressar. As que realmente importam são inefáveis.

As palavras têm força. Escutei muito isso. Mas elas podem não significar nada se um silêncio for mais oportuno. E depois de um silêncio as palavras pesam mais. Por isso, decidi que iria colocar mais silêncios entre a segura distância que me separava dos outros. Pra quê abrir a boca pra falar sem que haja intenção? Só para desgastar o timbre, secar a garganta? Não. Eu prefiro os diálogos tácitos. O conforto na emoção de um olhar. A mão que passa calor para o ombro. O braço que encaixa na cintura. Os lábios que se contorcem por um beijo. Prefiro a minúcia que entrega o que se sente e o que se quer, ali e agora. Meu armário esconde mesmo a tentativa de transformar em palavra o abstrato. Mas esconde também a frustração de palavras imersas num mar de angústia e a falta de coragem de recitar palavras que moram em poesias. Dessas eu não me orgulho. Diferente das coisas inefáveis, alguns pedaços de papéis na minha gaveta solta sugerem palavras que representam perfeitamente o que eu quero, porém estão presas em mim. Algumas estão perdidas em algum espaço entre meus pés e minha cabeça, já outras estão engasgadas, querendo subir, querendo liberdade. Eu quero liberdade. Mas eu sempre dou um jeito de mandá-las para o fundo do armário, da gaveta, do peito.

Uma vez li que as palavras foram sugeridas ao homem, que elas são a evocação de imagens. Então, como imaginar o imaginável? É a mesma dificuldade que se tem em dizer o indizível. Me sinto escrava das palavras que aos poucos me matam por dentro. Tanta gente querendo se apaixonar para não ficar sozinho, ganhar na loteria como se sorte existisse, ser rico da noite para o dia, ter fama nas redes sociais, estudar astronomia, construir uma família ou adotar um cachorro. Mas eu, a única coisa de que me permito querer nesse momento, é ser dona de mim. Dona da composição que me faz humana, com todo esse entra e sai de desejos mutáveis, com toda essa hiperatividade de sentimentos, com toda essa ebulição de ansiedade. Quero simplesmente deitar e relaxar. Ter controle sobre minhas próprias palavras, e então eu queimaria todos os pedaços de papéis que guardo, todos os dizeres que me sufocam. E às coisas que por desafio persisto em tentar colocá-las em palavras, frases e textos, compreendei, com humildade e experiência de quem ousou, que elas estão num estágio acima das concretudes da vida. E que permaneçam lá. Que continuem a descabelar os escritores e a dar oportunidades às atitudes, significando tudo isso que a gente chama de essência.