Idiossincrasia

E foi em um dia daqueles, em que estavam os dois à vontade na vida, no vento e no chão. Era um final de tarde bucólico, numa varanda aberta ao céu, onde soprava uma brisa fresca vinda de algum lugar. Sentados um ao lado do outro, ela bebericava uma água mineral, e ele apenas observava-lhe os gestos, como se a estudasse de uma maneira descompromissada.

Ela sorriu e recostou a cabeça em seu ombro. Os óculos escuros, presos no alto de sua cabeça, se desencaixaram de leve. Os dois se entreolharam.

Apenas pelo tom de sua íris, ela sabia qual assunto ele queria abordar. Apenas aquela vaga suposição fê-la sentir algo desconfortável. Porém, não poderia fugir daquilo a vida toda. Aquele garoto ao seu lado estava se tornando alguém importante dentro de sua história. Era preciso arriscar. Era quase necessário. E urgente.

O assunto começou leve, como aquela tarde em que desfrutavam da companhia um do outro. Os risos se espalhavam e contagiavam o ambiente morno da varanda. Foi quando ele falou nos braços.

Subitamente, a voz dela, rouca, suave e ritmada, se calou. Seus olhos atentos agora estavam assustados, enevoados pelo medo. Levantou-se rapidamente, tão sofregamente, que quase caiu. Ele a segurou pelo braço e ela sentiu sua pele morna envolver-lhe o pulso. Desnorteada como estava, ela se desvencilhou de sua mão e começou a caminhar de um lado a outro da varanda, sem saber o que fazer ou para onde ir. Murmurava sobre os braços, nervosamente, enquanto lágrimas quentes desciam em torrente pelo seu rosto salgado.

Sua consumição foi interrompida quando ele abriu os braços em volta dela e a puxou pra si. Como se esperasse um alento para se abrir, a jovem de cabelos negros desabou em um choro convulso, enquanto o jovem, aflito, sustentava seu corpo. As lágrimas dela encharcaram o lado esquerdo da sua camiseta cáqui, estampada com o rosto de Jimi Hendrix. Ele repetia, com a voz firme e terna, que aquilo já tinha passado, em meio a mil pedidos de desculpas, por ter tocado naquele assunto incômodo. Ela repetia várias palavras sem sentido, de um passado doloroso, que ainda teimava em povoar certos recônditos de seus pensamentos. Sua respiração era rápida e entrecortada por soluços. Ele podia sentir seu coração descompassado sobre a blusa de algodão, roçando-lhe o peito.

Foi quando ele levantou suavemente a cabeça de sua menina, de forma que pudesse fitar seus olhos. Aqueles olhos negros, levemente rasgados, agora banhados pela dor, fitaram-no com alguma doçura, ainda enevoada pela aflição.

- Menina, você sabe do que eu me lembrei agora?

Ela murmurou tão baixo que mal se podia ouvir.

- Do quê?

Ele começou a cantarolar uma canção de rock antiga. Mas não era qualquer canção. Era a canção favorita dela. A canção que embalara boa parte de sua juventude.

E então ela sentiu a revolta dentro de si se acalmar. Esboçou um sorriso e completou o verso começado por ele. E ali começaram uma harmonia meio desarmônica, sob aquele início de noite, sob lágrimas ressequidas de um passado distante. E quem tivesse passando por ali naquele momento, poderia ouvir duas vozes soltas, em sincronia imperfeita, embaladas pelo amor e pelo ar tépido de uma noite sem estrelas.