Mestres de Ofício

Dia destes em uma feira de produtos artesanais fui abordado por uma senhora, que me ouviu perguntar pela engenharia das tramas dos pontos de crochê de alguns trabalhos expostos, contando entusiasmada sobre a descoberta de um tipo de ponto de origem portuguesa, aplicado nas roupas da moda no tempo do Brasil império.

Pacientemente ouvi sobre um assunto que conhecia porque minha mãe e minha mulher são praticantes daquela arte. Foi agradável.

Ora essa, o sentido daquela história sobre crochê, ia muito além do rosto brilhante daquela senhora, que expressava paz angelical, desprovida de vaidade, e sobre cada ponto que falava, fazia uma doação de gestos físicos e mentais, armada de paciência e amor, tentando resgatar artes para contribuir com o despertar de uma cultura adormecida no seu país.

A peça em crochê demonstrava um impressionante volteio dos fios de lã para o ponto alto, que ao passar pelo mágico movimento do dedo polegar, gerava os pontos baixos, curtos, elegantes e distantes entre si, mas ligados por uma espécie de coluna vertebral, solitária na sua função de mestre de relacionamento, ligando as extremidades, fazendo uma pinça com os demais e a conseqüente ligação, formando uma estola artesanal de indescritível beleza.

Para que eu entendesse o mecanismo, ela pediu minha atenção para a função do dedo polegar, que sem ele, como em nossas atividades comuns, inúmeras coisas não poderiam ser feitas.

Entre elas não seríamos capazes de pegar um copo de água para beber, assim como, fazer o sinal de positivo ou negativo. Além do mais, ele tem a extraordinária propriedade de ser o único que pode assinar pelo analfabeto. O polegar é o mais forte dos dedos. Sem ele, seríamos incapazes de pegar uma agulha.

É num lance praticamente invisível do dedo polegar, que o giro das agulhas do crochê, faz o dedo indicador ter a função insubstituível de lançar o emaranhado de lã organizado no caos, sobre o grampo, uma peça de sustentação dos fios, que foi aperfeiçoada para o uso específico de viabilizar o ressurgimento daquele modelo de crochê do tempo do império, por iniciativa e criatividade da artesã, graças a uma fotografia de um quadro da princesa Izabel que completava seus trajes com aquele adereço.

Colocados em outro plano, os fios crochetados surgem dos encaixes e das dobras como parceiros que se formam num conjunto de movimentos corporais, impondo autoridade através da beleza do emaranhado de cores se materializando num verdadeiro ato de amor, que ao completar sua metamorfose surgirá como complemento de roupas femininas que primam pela elegância e bom gosto.

O dedo indicador é que nos mostra os rumos que devemos seguir. É o nosso socorro quando nos orienta nas entradas e saídas. É o único que só dói quando bate. Além de servir para resgatar artes seculares, sendo o maior colaborador do polegar na arte do crochê, é o dono da verdade, pois com ele é que pedimos e impomos silêncio.

Sem ele nossa autoridade se esvai, mas também pode nos transformar em mal educados, arrogantes e estúpidos quando o colocamos abruptamente em riste.

O dedo médio não se desvia do nível das articulações, pois responde pela beleza das mãos. É sócio do indicador para o folheamento de livros, revistas e suporte para a escrita. Presta ajuda a todos os seus parceiros, por isso merece o carinhoso tratamento de: pai de todos.

Já o anular é o nosso dedo nobre. Nele é que são colocadas as honrarias. Nas formaturas, ele recebe o anel de graduação. No casamento se realça recebendo as alianças e as bênçãos.

O dedo menor, também conhecido por minguinho, o quinto da nossa mão não deixa por menos o seu valor, pois contribui para a harmonia do conjunto. Houve época em que ele quis sair do sério. Deixou crescer a unha e por sua vaidade exacerbada foi punido. Como castigo tem a missão de limpar a sujeira da unha dos outros dedos. Foi condenado a tirar cera dos ouvidos, limpar as inoportunas badalhocas grudadas no nariz e coçar os mais recônditos lugares do nosso corpo. Mas não se humilha, não admite discriminações, e na medida do possível se nivela aos demais, pois permite que nossas mãos alcancem as teclas nos extremos dos instrumentos onde as notas musicais geram peças de inestimável valor e ternura.

É de se perguntar se alguma vez demos à devida importância ao conjunto dos dedos, pois eles é que formam as nossas mãos.

Com nossas mãos tudo fazemos, nos manifestamos, escrevemos, fazemos crochê, operamos, acariciamos e nos identificamos, mas em se tratando de dedos, tive que me socorrer da fisiologia dos dedos e sendo assim não poderia deixar de fora os estereótipos muito comuns em autistas.

Quando encontrei aquela iluminada artesã, captei que das suas mãos os seus dedos emanavam curvas de energia boa, e que cada ponto do seu crochê era uma união amorosa de um gesto motor-perceptivo-intuitivo.

Os estereótipos, não são gestos mecânicos ou impulsos elétricos das mãos ou dos dedos que devem ser tratados de maneira isolada, fio a fio.

Na nossa ousadia pensamos que os dedos são provas de que tanto um autista como uma artesã crocheteira, podem expressar a compreensão de que a sua serventia é uma divina expressão corporal.

São expressões silenciosamente eloqüentes, reveladas através de um emaranhado de fios da arte de fazer crochê, que estes movimentos dos dedos, mestres de ofício, autistas ou não, também podem fazer a luz brilhar, recebendo como paga apenas prazer puro pela aplicação do sentimento de amoroso dever cumprido.

Nilton Salvador
Enviado por Nilton Salvador em 03/07/2007
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