Teorias de um Trocador

A vendedora me passou o troco e fui embora. Era uma tarde de novembro, não que o mês importasse, poderia ser setembro, outubro, agosto, março, junho, janeiro ou fevereiro, não importa e muito menos que era tarde, mas dando continuidade, o sol estava se pondo e o dia estava laranja, as luzes começaram a ascender.

Começo a comer minhas batatas chips, o barulho daquilo quebrando, o sal, o gosto... Não comemos aquilo para saciar nossa fome comemos aquilo para ficar com sede e a água se tornar mais saborosa, talvez estas batatas fossem golpe de marketing da Coca-Cola, ou talvez não, mas não havia um significado plausível para comer batatas crocantes e salgadas, elas não matavam a fome. Meu relógio alarma seis horas quando chego ao meu trabalho: Não era um emprego empolgante, cobrador de ônibus, pagava bem, mas não tinha um “retorno filosófico”. Minha carga horária hoje é até as três da manha, eu pego duas viagens do corujão antes da troca.

Visto aquela roupa azul, aquela padronização para não mostrar nossa personalidade, à roupa mostra nossa personalidade, e muitas das vezes mostram o quanto não temos personalidade, no estilo de pessoas que compram roupa para guarda-roupas usarem, ou porque alguém da novela usa, trabalha para a mídia, um trabalhador mídiano mediano.

- Sairemos as sete e vinte hoje – diz o motorista. Paulo era um bom motorista, pai de famílias, ou seja, tem uma mulher e dois filhos, tem uma amante e dois filhos, nunca soube como ele sustenta duas famílias secretamente com um salário de motorista, mas tem coisas que não são da nossa conta. Paulo era muito gordo, muito suado, muito falador, muito errado, mas mesmo assim era um bom motorista, nunca bateu... Não que eu saiba.

- Certo – respondo colocando minha personalidade no armário.

Sete e dez eu já estava pronto dentro do ônibus. Chequei troco, chequei a maquina da carteira, chequei a catraca, minha área estava bem. Paulo sobe no ônibus, faz um comentário sobre o jogo de futebol, e da a partida. Começa a jornada noturna. O nosso ônibus em si serve para volta, há sempre pessoas voltando no nosso ônibus e nunca indo. Voltam do trabalho, das aulas, das festas, da vida, em si, de tudo poucos vão no nosso ônibus.

A primeira parada sobem seis: Três homens, uma mulher jovem (uns dezesseis anos) uma mulher de idade média e uma velha. Todos pagam, passam a catraca e sentam-se, todos sentam sozinhos longe um do outro... Seres humanos odeiam conviver entre si, já notei isto no ônibus, em restaurantes, em cinemas com pouca gente entre outros, as pessoas sempre preferem sentar sozinhos, nos ônibus sempre sentam sozinhos, em restaurantes sempre procuram as mesas mais afastadas do centro e das pessoas, no cinema sempre senta nas ultimas fileiras ou nas primeiras. Eu chamo isso de humanofobia e centrofobia, medo de companhias humanas e medo de sentar em centros de lugares, quanto mais à população mundial cresce mais estamos sozinhos.

O ônibus corta a noite como um bisturi corta o doente. Paulo tinha ligado o rádio do ônibus em musica pop, aquelas batidinhas rápidas sem nenhum sentido, sem nenhuma palavra, sem nenhuma métrica. sem nenhuma, poesia, só batida “Tum Tum Tum Tum”. Acho que a musica está se perdendo, morreram as melodias ficam as batidas frenéticas e os jovens pulando, como diria um ex amigo meu, a musica morreu Britney Spears a - matou..

Agora é a parada da universidade, sobem dois rapazes com a camisa que indicava que eles eram inteligentes o bastante para passar naquela faculdade e eu era apenas um trocador, alias, ainda dizia que o curso era o de Medicina. Eles sobem, pagam passam a catraca e sentam num gesto mecânico sem expressão. Junto com os rapazes subiu uma moça: cabelos longos e cacheados, castanhos com um ar de “apesar de serem lindos eu odeio meus cabelos” um óculos moderno e usando uma mesma roupa divulgadora de seu feito de ter passado na faculdade, mas agora em direito. A garota paga a passagem meio desajeitada com os livros, passa a catraca e senta num lugar vazio bem próximo a saída do ônibus, ela abre a bolsa tira a maquiagem e começa a retocar mostrando seu lado humano de seguir uma tendência de beleza disforme, passando batom, lápis, blush entre outros, mostrando que certamente ela sofre na academia todo dia para manter um corpo apresentável, gasta montes de dinheiro em produtos de beleza e praticamente não come...Uma escrava da beleza mídiana, das revistas de moda, das passarelas onde andam esqueletos ainda vivos reanimados por estímulos monetários e por um monte de droga que nos injetam pela TV.

O trajeto até o ponto final durou meia hora, mas uns cinco desses e mudamos o trajeto, mais cinco e terminamos o turno, vou para casa, tomo um banho, finjo que leio um livro e durmo, no outro dia a mesma coisa e tudo se torna um pendulo. Enquanto contava o dinheiro do caixa pensava: a vida realmente é um pendulo, vamos e voltamos sempre para o mesmo lugar.

Eram duas e vinte cinco da manha, a ultima viagem nossa antes de voltarmos para nossas tocas. Paulo iria para a casa de sua amante, pois sua mulher acha que ele trabalha um dia sim e outro não, e os horários se invertem toda semana. Suas mulheres não sabem da existência uma da outra, e seus filhos não sabem que tem mais dois irmãos, agora três com o filho que a filha da empregada espera dele. Paulo termina seu café, joga o copo pela janela, e dá a partida, já havia pessoas dentro do ônibus, umas nove: três rapazes, duas senhoras, um senhor, e um grupo de meninas que passaram a noite farreando.

O ônibus cortou a noite novamente, era único, onipotente, onipresente, onitudo, ônibus era a única coisa que trafegava nas ruas desertas. Os sinais de transito todos sinalizam amarelo, um amarelo pulsante como uma maquina para cardíacos um amarelo que significava atenção, sua vida pode acabar a qualquer momento.

Passamos por algumas boates, pegamos alguns passageiros poucos embriagados, e partimos. No ônibus contavam dezesseis, e como disse, não iam, voltavam.