Num Ponto de Ônibus em Sampa

Às vezes vou a São Paulo de carro, mas minha limitada capacidade de locomoção naquele trânsito intrincado e assustador induz-me a dirigir apenas nos trajetos já conhecidos até as casas de meus parentes. Se por uma pequena distração entro numa via errada, pronto, vejo-me num labirinto indecifrável do qual só vou sair utilizando-me do guia da cidade ou da caridade de estranhos que se disponham a me ensinar a sair dele. Por isso, consigo chegar com o carro até meus parentes, mas se da casa deles tenho de me deslocar até o centro ou outros bairros da cidade, para algum compromisso, prefiro pegar ônibus e metrô.

Sou capaz de suportar o desconforto dos ônibus, amplificado nos horários de pico, com certa tolerância de forasteiro que sabe ser aquela uma circunstância provisória. No entanto, nessa situação privilegiada, sempre me vem um remorso ao encarar aqueles rostos tristes e resignados dos demais passageiros que têm de enfrentar aquela condição como um fardo rotineiro em suas vidas.

Mas também me consola o fato de poder encontrar nesses passeios urbanos de ônibus tipos humanos que dificilmente encontraria dentro de um carro. E encontrei um deles num ponto de ônibus.

Esse ponto de ônibus fica na Avenida Europa, que é continuação da conhecida Rua Augusta, numa posição distante algumas quadras da Avenida Brigadeiro Faria Lima. Frustrado por não ter conseguido atingir um objetivo num endereço perto dali, por ter a empresa a que me dirigira se mudado dali, eu voltava para o centro para pegar o metrô em direção a outro compromisso.

Estava sozinho no ponto, esperando qualquer ônibus que me levasse até o início da Rua Augusta, próximo à estação Anhangabaú do metrô. Carros passam de forma incessante nos dois sentidos, só parando quando o semáforo da esquina fecha o trânsito.

Num momento em que o sinal fecha, reparo num deficiente físico atravessando a rua pela faixa de pedestres. Uma cena inusitada. Com as pernas atrofiadas, movimenta-se sentado sobre um skate, pequena prancha com quatro rodinhas, impulsionando esta com a mão direita, a qual empurra o asfalto. A mão é devidamente protegida por uma espécie de semiluva grossa de borracha ou de couro. Tem um boné, um bigode, uma mochila atrás das costas. Deve ter uns quarenta anos.

Aproxima-se de mim. Por um breve instante penso que é um pedinte e vai pedir-me alguma coisa, mas descarto logo a idéia, devido à sua aparência discreta e distinta. Roupas limpas, rosto sereno. Certamente está longe de ser um mendigo. Encosta-se no postinho do ponto de ônibus.

Olho para ele de vez em quando, curioso, mas não me atrevo a falar-lhe. Os motoristas que passam e param no semáforo voltam seus olhares curiosos para ele, enquanto esperam o sinal abrir. Que indagações passam pelas suas cabeças quando o olham? Talvez as mesmas que passam pela minha.

Enfim, ele me olha e me cumprimenta com um aceno de cabeça. Isso me encoraja e coloco-lhe a dúvida que me incomoda:

- O senhor consegue subir ao ônibus sozinho?

- Sim - responde-me ele – Existem alguns ônibus especiais para isso.

- O que é que o senhor faz para sobreviver?

- Vendo doces.

Faz uma pausa e completa:

- É preciso correr atrás, não?

Lembro-me de um chaveiro cego que conheci em minha cidade e digo-lhe isso. E comento que muitas pessoas fisicamente perfeitas reclamam da vida.

- Já salvei a vida de uma pessoa - diz-me ele.

Essa afirmação me desconcerta. Como é que uma pessoa naquelas condições precárias salvaria a vida de alguém? A lógica seria que acontecesse o contrário, isto é, que alguém é que lhe salvasse a vida. É claro que escuto com atenção redobrada a complementação:

- Estava na minha banca quando uma senhora se aproximou de mim com um sorriso. Perguntei-lhe se queria algum doce, mas ela abanou a cabeça. Ela disse que queria apenas me agradecer. “Mas agradecer por quê?”, perguntei. Ela disse que, há algum tempo atrás, estivera prestes a fazer uma besteira (cometer suicídio). Teve a sorte de, naquele momento crítico, observar-me nessa minha condição, envergonhou-se de si mesma e desistiu. Vinha agora me agradecer por ter-lhe salvo a vida. Deu-me um agrado e foi embora. Nunca mais a vi.

Bela história, penso. Eis uma maneira de uma pessoa salvar outra. Nenhum ato heróico, nenhuma ação bombástica, nenhuma cena hollywoodiana, nenhuma lágrima vertida. Apenas comportando-se de forma adequada e digna na vida, apenas sendo um exemplo de vida para outras vidas desestruturadas.

Digo-lhe então que existem outras pessoas em condições piores que as dele, entravadas numa cadeira ou numa cama, dependentes em tudo, que também se agarram à vida como podem. E que ele, apesar de tudo, ainda era independente, um privilegiado em relação a essas pessoas.

O ônibus dele vem chegando e ele faz um sinal para o motorista. A porta se abre e ele chama o cobrador. Este aparece e grita para o motorista alguma coisa. Uma plataforma é rebaixada até ao rés do chão.

Ele volta-se para mim e despede-se.

- Felicidades – desejo-lhe com sinceridade.

O cobrador o auxilia na subida à plataforma, embora ele não precise disso. Poderia subir sozinho.

O ônibus segue seu destino, levando meu instantâneo amigo salvador de vidas.

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 04/07/2007
Reeditado em 12/07/2007
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