UM EXEMPLO DE FELICIDADE

Aluisio Rodrigues

Em outro texto falei sobre a Felicidade sob um ponto de vista teórico, numa visão meramente pessoal.

Prossigo no tema para ao final citar um fato presenciado que a define, no particular.

Antes porém, tome-se o exemplo de portadores de deficiência física ou mental que se adaptam a alguma atividade compatível com seu estado e dela tiram proveitos jamais imagináveis pelos sadios de corpo e mente.

Ou então, veja-a estampar-se no sorriso de uma criança pobre ao receber um brinquedo simples, produto de artesanato, ou na alegria de uma criança rica ao ser brindada com um brinquedo eletrônico.

A Felicidade de ambas tem o mesmo grau de satisfação, imensurável por fator econômico.

Veja-se, ainda, a placidez do sono de um bebê, farto do peito materno que lhe saciou a fome; a alegria do deficiente físico ao receber o instrumento ortopédico que facilitará os movimentos ou proporcionar-lhe-á o exercício de uma atividade condigna, antes impossível de exercê-la.

A felicidade, conclui-se, não é, por sua própria relatividade ou natureza multifacetada, um valor mensurável objetivamente.

Não obstante apresentar-se sob várias faces, é absoluta em si própria considerada.

Não há felicidade maior ou menor.

Ela simplesmente existe. Ausente algum componente no seu todo, não é felicidade.

Pode ser conformismo, resignação, silêncio sobre problemas pessoais, sentimentais ou financeiros, mas não é felicidade.

A introspecção não se condiz com ela.

A alegria, sim, pois fruto da exteriorização de um estado de espírito, de uma paz interior, de um sentir-se de bem com a vida.

Por tal razão, ela está mais ao alcance da criança do que do adulto, embora não se constitua regra absoluta.

Esse detalhe, de profunda sabedoria, está expresso em belo verso de Ganzaguinha, que fica com a “pureza da resposta das crianças” , pois sendo a vida bonita e bonita, deve-se viver e não ter a vergonha de ser feliz.

No entanto, e conforme já afirmei acima, ela pode se apresentar de várias formas, tem várias faces, daí a natureza multifacetada que lhe atribuo.

Apresenta-se, às vezes, quase imperceptível a olhos menos atentos, ou não é sentida por quem vive o momento.

Não raro, deixa-se de percebê-la por ignorar-se o seu significado; por incapacidade de discernimento entre o bom e o ruim, o mal e o bem ou o belo e o feio.

Outras vezes, a inocência impede valorar a noção exata do que é ser ou não feliz; do que existe ou não no universo ao seu redor; do que se passa além do essencialmente necessário no diminuto mundo à sua volta.

Apesar de tudo, pode-se ser feliz, e, neste detalhe, está a relatividade a qual me reportei.

O relato a seguir procura retratar essa face da Felicidade. Ei-la:

O trânsito fluía normalmente numa das movimentadas ruas da cidade. Início da manhã, uns com pressa de chegar pontualmente ao trabalho, outros com a ansiedade de não atrasar a presença dos filhos no colégio.

De repente, num cruzamento, um cidadão com status de executivo e uma jovem senhora acompanhada de dois garotos com fardamento do colégio resolvem no mesmo instante cruzar a avenida com seus respectivos veículos.

Há o choque inevitável e as defesas recíprocas: quem avançou o sinal e sobre quem recai a culpa pelo acidente.

Ânimos exaltados, não se dão conta da interrupção do trânsito nem da grande fila formada igualmente de pessoas com idêntico objetivo: não chegar atrasado ao seu destino.

Enquanto aguardava paciente o desfecho da discussão, vejo à minha direita um casal humilde, pedintes ou retirantes da seca já instalada no sertão naquele ano.

O quadro, ao mesmo tempo bizarro pela circunstância de ocorrer em plena via pública, e triste por retratar uma realidade brasileira: a existência de pessoas que sobrevivem abaixo da linha da pobreza.

O homem tentava acender um fogaréu, utilizando-se das ramagens secas espalhadas no próprio canteiro público.

Uma jovem mulher oferecia o peito mirrado a uma criança de poucos meses, igualmente mirrada, na busca infrutífera de saciar-lhe a fome.

Aos seus pés, outra criança um pouco mais velha, entre dois e três anos, levantas-se do que seria seu berço, um amontoado de trapos e papelão.

Ato continuo, dirige-se em minha direção para o final do canteiro, limite do leito da rua, onde os carros aguardavam a hora de prosseguir.

Como se nada existisse além do seu próprio universo, o reduzido espaço ocupado por sua família, acocorou-se no meio fio, costas voltadas para os transeuntes.

Ali desobrigou-se de suas necessidades fisiológicas matinais, apanhou do chão um papel ao alcance da mão, dele se utilizou como devido e, nu como nascera, voltou ao seu berço, acomodou-se na posição fetal para reinício do sono dos justos.

Embevecido com a cena inusitada, não notei que a discussão chegara ao final, e meu caminho estava livre, mas eu impedia um grande número de veículo prosseguir

A discussão entre as pessoas envolvidas no acidente constituiu mais um episódio a somar-se aos costumeiros entreveros de motoristas, cada qual com razão indiscutível.

A cena do garoto e suas circunstâncias, no entanto, ocupou todo o meu raciocino no decorrer daquele e dos dias que se seguiram.

Hoje, instado a emitir um conceito sobre o tema, retorno o pensamento ao passado, faço uma reavaliação dos fatos para consolidar o seguinte entendimento:

A Felicidade se apresenta sob várias formas; tem várias faces; às vezes é imperceptível aos olhos de terceiros e desconhecida para quem com ela convive.

Biuza
Enviado por Biuza em 08/07/2007
Código do texto: T556216