Espelho

"Quando eu preciso substitui-la, eu sou uma apagadora de mente, qualquer coisa vai. Temos esse pecado em nosso cérebro. Mas ela não vai querer me ver de novo, disso eu sei." Ela vem cantando seu hino de The Black Keys na minha direção enquanto pisa no chão frio descalça. Com o cabelo ainda despenteado do sono pesado ela enrola uma mecha no dedo e se põe ali em um estado de sedução e poder. O poder da sedução. E ela sabe que tem. Como ela já vi muitas se acabarem. Ora porque precisam de mim, ora porque fogem de mim. Mas ela ainda é jovem. Não vai fugir agora. E a juventude é uma droga que com o mal do tempo traz as rugas, embora em algumas pessoas ela ainda reverbere internamente mesmo que a pele já esteja flácida e o andar mais lento. Não é o caso dela. Qualquer aspecto ranzinza a deixaria maluca de horror. Ela nem precisa se preocupar com isso por enquanto. Todas as manhãs ela me olha, se olha, joga uma água no rosto e isso basta para vitalizar sua beleza. O reflexo que dou a ela o dia todo a satisfaz. Ela gosta do que vê e faz questão que a vejam também.

Como as flores porém às vezes murcham precocemente, ela parece estar desaprendendo a fazer fotossíntese. Suas cores padecem e suas pálpebras parecem querer censurar seus olhos. Um sorriso para mim está se tornando um sacrifício absurdo e seus lábios parece que vão rasgar se ela ousar mostrar os dentes. Tudo o que vejo ela consumir assim que acorda produz fumaça cinzenta, como uma nuvem que paira sobre ela prestes a se desfazer em tempestade. A vaidade, o ego e a alegria não a pertencem mais como um dia pertencera. Foram assassinados por alguma espécie de ansiedade ou desespero. Mas de nada disso ela se lembra depois. É uma verdadeira apagadora de mente. E ultimamente estou sendo severamente trocado por seus novos vícios. Penso que o receio de ver como sua beleza está morrendo é o que a afasta de mim. O receio de ver a pele não tão firme e o cabelo não tão brilhoso. Negar a velhice que chega mais cedo é mais fácil. E não apenas de face e corpo, sua alma também não carrega mais o entusiasmo juvenil que antes morava em si.

Ela certamente está agora fugindo de mim. Cada dia mais distante. A menina vai se acabar, como eu já vi muitas antes. Quando precisava de mim, a doença era a vaidade. Agora que corre de mim, a doença é o medo. Mas o reflexo é dela. Quem escolheu morrer jovem, mesmo que para isso ela tenha envelhecido, não fui eu. Aliás, a escolha nunca é minha. As pessoas são o que elas, de certa forma, decidem ser. Eu só as mostro sua aparência. Sorte a delas. Se fosse possível ver suas almas através de mim, muitas gostariam de nunca ter sequer me conhecido.