“Virar purpurina” – balbúrdia mental e sua banalização

Certa noite, navegando pela internet, me chamou atenção o destaque de alguém querendo se jogar, do alto da passarela de ferro, de uma avenida. Acredito que já passava das 21h. Como me encontrava perto da ocorrência, fui até a varanda tentando vislumbrar a cena. Não consegui. Voltei ao computador e fiquei acompanhando o desenrolar, através dos comentários postados no facebook.
O corpo de bombeiros já estava a postos; o SAMU não tinha aparecido ainda; um pequeno aglomerado de pessoas olhava cada movimento de Mikele, sim, o nome social da personagem; outros tentavam presumir o motivo que o/a levaria a isso. Meia pista interditada e, um colchão fora colocado, caso se materializasse a tentativa.
Olhei de novo no facebook, o irmão de Mikele apareceu, mas nada conseguira fazer. Num momento, dependurada, a personagem gritava que queria falar com a mãe. Passaram-se três horas, a mãe não apareceu. Restou o trabalho do Corpo de Bombeiros, juntamente com o irmão da Mikele para evitar o pior.
Mais calmo, ao saber que não tinha ocorrido o pior, voltei ao facebook e li atentamente os comentários das pessoas que se inteiravam da notícia: de indignação à comoção. Um grupo em discussão quanto à questão de identidade de gênero: se seria chamado de “o” travesti ou “a” travesti. Alguns xingamentos e desagravos a começar por isso. Outros, indignados pelo fato de, tanto o Corpo de Bombeiros quanto o SAMU, estariam perdendo tempo com alguém que queria se matar e estava fazendo fita; fora a questão de que meia pista estaria interditada – embora a hora avançada. Não faltaram os insultos e piadinhas à personagem: “se joga duma vez, imundície!”, “menos uma porcaria na cidade”, “esse quer aparecer”, “bicha gosta de chamar atenção”, “espera amanhecer, assim você terá mais plateia”. Por outro lado, alguns discutiam a questão do suicídio nos âmbitos religioso, cultural, sexual. Alguns comovidos até rezavam para o desenlace positivo da situação. Não faltou alguém que, querendo dar força, disse: “amiga, não se preocupe, você vai virar purpurina.”
Imagino as tantas Mikeles que já passaram por isso ou, ainda irão passar. Você já pensou que poderia ser um membro de tua família? Um amigo ou colega estimado? Lembrei-me do sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, ao caracterizar a Modernidade como uma tessitura de relações frágeis (outros pensadores chamam de laços fracos); uma Modernidade líquida, onde os intercursos são tênues, onde imperam o medo e a desconfiança; onde até os amores, os afetos são líquidos – claro que exceções existem.
É imensa a dificuldade, nossa, de entabular uma relação empática, aqui entendida como a ação de se colocar no lugar do outro, de imaginar como pensaríamos, sentiríamos e/ou agiríamos se tivéssemos no lugar do outro, em situação análoga. Em decorrência, respeitar a dor alheia (em suas diversas manifestações), fazendo um esforço humano para não banalizá-la, eis uma proeza louvável.
 
(Crônica publicada na "Revista LIterária Varal do Brasil - O lado escuro do ser" - Genebra/Suiça, Edição nº 41 B - Ano 7. Medalha de Ouro no Sarau de Artes e Poesias de Outono da ANBA - 2016)