A gratidão

Ainda era bem cedo quando o velho caminhão parou em frente de casa, meus pais estavam sérios e tristes, e nós não sabíamos o que estava acontecendo, eles não diziam muita coisa, e nós aprendemos muito cedo a não argumentar.

As nossas poucas coisas foram se amontoando pouco a pouco na carroceria, não tínhamos quase nada, e a mudança não tardaria a se concluir. Uma cama de casal com um colchão,e um guarda-roupa, um sofá, fogão de quatro bocas com botijão, mesa e quatro cadeiras, o resto eram cacarecos como baldes, rodos, alguns utensílios de cozinha e nada mais.

A minha mãe , meu irmão e eu (com oito anos), fomos para o ponto de ônibus, então lhe perguntei para onde estávamos indo , e o que estava acontecendo, e ela me disse com lágrimas nos olhos ; " Fomos despejados , o oficial ..." e não concluiu. Claro que só entendi a palavra " despejo", e ficamos assim em silêncio, um tanto perdidos. Havíamos chegado ao Brasil poucos meses antes, e hoje entendo que o meu pai ainda não reunia condições de haver nos chamado, não estava estabilizado, ganhava pouco, mas havia ficado um ano sem a família...queria nos ter de novo.

A seguir fomos para um quartinho apertado, e todas as nossas coisas estavam lá, desajeitadas, uma sobre as outras, mal dava para dormir, o guarda-roupa fazia uma espécie de divisão, e lá ficamos por um mês aproximadamente, até o meu pai se arranjar. Hoje entendo a minha mãe e as suas lágrimas, cada uma delas tinha um peso, pois em pouco mais de um ano a nossa vida havia se transformado, de um apartamento a beira da praia na minha cidade natal ( Cádiz), a um quartinho em outro país, acho que ela só não enlouqueceu por nos, mas hoje eu entendo todas as suas internações posteriores na psiquiatria, até o final.

Naqueles momentos tão duros, comíamos o que havia, pão com alguma coisa, ou apenas pão com o miolo, e água, até que um casal de espanhóis do norte ( nós éramos do sul), apareceu em nossas vidas, com uma sacola de mantimentos, ela se chamava Argentina e ele Bernardino, tinham cinco filhos, e também eram imigrantes, estavam se ajeitando ainda, mas olharam para nós, e viram que ainda éramos mais necessitados do que eles, e nos estenderam a mão sem pedir nada em troca, aquela atitude se repetiu por três meses, e a forte amizade e gratidão seguiu por toda a vida.

Dois anos depois, meus pais é que levavam sacolas de mantimentos à aquela família, e não poupavam , até chocolate para os menores, e entre abraços e lágrimas estreitavam os laços .

Uma vez , eu já adulto , casado e com filhos, lá pelos meus trinta anos, um pouco mais, cheguei em casa depois de uma partida de futebol, suado e ainda uniformizado, e encontrei meus pais na minha sala, e aquelas pessoas que nos ajudaram na infância, e fiquei sem palavras, os saudei com um sorriso e eles me abraçaram com carinho . Meus pais sempre o ajudaram , quando se fazia necessário, até o final da vida.

Para coisas do amor , do coração não existem cobranças, nem dívidas, existem vidas que se ajudam, se entendem , se protegem, e acho que a isso podemos chamar unicamente de "amor".

Aragón Guerrero
Enviado por Aragón Guerrero em 30/04/2016
Reeditado em 30/04/2016
Código do texto: T5621278
Classificação de conteúdo: seguro