A criança que eu fui
 
Hoje eu tive que fazer exames de laboratório. Fiquei algum tempo esperando para ser atendida; o laboratório famoso está sempre cheio de gente. Gente ansiosa pelo resultado, outros fazendo check-up e, como sempre, algumas crianças estão presentes. Eu fui preparada para gastar pelo menos duas horas no local,  com colheitas de sangue a cada 25 minutos. Qual não foi minha surpresa a entrada de duas crianças de uniforme, faixa de 9 e 8 anos, babá e mãe bonita e elegante.

A mãe providenciou os papéis para os exames de sangue das duas crianças, enquanto uma babá desesperada corria atrás dos dois, que gritavam feito loucos, se escondiam dentro do laboratório, com uma platéia assustada. O mais novo era mais seguro de si, mas seguia os passos do irmão. Na frente de todos, a conversa dos dois era mais ou menos assim:

- Se eu sentir dor, você sente dor comigo?
- Claro que sinto, mas a moça disse que não vai sentir dor nenhuma.
- Mas se eu sentir, você vai ter que sentir dor comigo. Quero ir embora!


E começava tudo de novo. Gritos, escondidos atrás de um painel que balançava de um lado a outro, sob o olhar da  funcionária, sem saber como controlar tamanha fúria. Finalmente conseguiram levar os dois. Os gritos eram de quem estava sendo torturado com uma navalha bem afiada. Coisa impressionante. Nomes feios para a mãe e para a babá, chutes e pontapés. Depois que terminaram, a mãe saiu na frente, sorrindo, como se nada do que estava se passando tivesse algo a ver com ela. Pobre babá, cuidando de meninos já bem grandinhos...

Fiquei lembrando de minha infancia, pobre e sem chance de fazer birras. Lembro-me de minha mãe austera, sem nunca sorrir, que só com um olhar já decidia qual seria meu futuro pelas próximas semanas.  Tinha tanto respeito por ela que o tratamento “senhora” somente veio a ser compreendido por mim muitos anos depois. Senhora é aquela pessoa que está acima de você, que sabe tudo, que manda, exige respeito e não aceita nenhuma resposta em suas decisões.

Eu adorava piqueniques, folguedos, jogar ferrinho, pescar, recortar figuras de revistas velhas, ler todos os livros que eu tivesse disponibilidade. Um dia comecei a adolescer e descobri o valor de um saltinho no sapato, o batom, o primeiro soutien... E era assim:

- Mãe, amanhã é a festa da padroeira. A senhora me deixa comprar um...
- Não!
- ... sapatinho lindo que eu vi...
- Não!
- ... que tem um saltinho de dois centímetros. Deixa?
- Não!
- Mas mãe... Porque a senhora não deixa?
- Porque não.
 
E assim eu carregava minhas frustrações semanas e meses, dias longos e anos. Nem por isso eu deixava de respeitar a  minha mãe. Nem as “embrocações” na minha garganta inflamada, que eu tinha que ir na farmácia e me submeter sem reclamar e abrir a boca; nem isso era motivo de chorar ou mostrar que doía e incomodava intensamente...

Durante as férias meus pais me deixavam ir passar uns dias na roça, com a Nona e o Nono. E eu morria de saudade... Lembrto-me perfeitamente quando voltei de uma dessas visitas. Minha mãe estava na igreja e eu fiquei de pé, olhando para ela como se fosse a deusa mais linda do  mundo. Foi a única vez que minha mãe sorriu para mim. Eu me senti a mais feliz das meninas de sete anos do mundo!

Não quero que pensem que eu não amava minha mãe, pelo contrário. Mas para quem foi criada passando fome e trabalhando nas casas como empregada doméstica, minha mãe até que se saiu muito bem e criou os cinco filhos, deu estudo junto com meu pai, meu amado pai...

Criar um filho é saber colocar rédeas quando necessário, é ser a maior amiga quando precisam de nós... Tantas lembranças passaram pela minha mente nas horas que passei no laboratório...
 
Sunny L
 
 Imagem Editora Abril