O Amanhã


"Te alevanta, menina!"
Seus olhos se abrem e ela fica imóvel na rede.
Mais um dia.

O sibite do irmão caçula canta com gosto de gás. Pelos buracos nas telhas uma luz amarela e doentia espreita o interior obscuro do quarto. Ela olha para a gaiola do passarinho. Mais tarde, quando estiver varrendo a casa, em um impulso irá soltá-lo e ele não vai se fazer de rogado, vai voar mesmo, se esconder entre os caibros, ganhar o mundo. Mas ela ainda não sabe.

"Te alevanta, égua preguiçosa! Ô curdiacho!"
Será tão difícill para a mãe compreender que ela precisa se acostumar a estar viva? É tão desolador se acordar para um novo dia de catar feijão, enxugar o mijo do irmãozinho, limpar com o pano de chão o vômito do pai que bebeu na véspera e continua deitado àquela hora, de ressaca, arrumar a casa e de tarde ir para o colégio onde todas as moças da sua idade têm roupas apresentáveis que ela não tem porque é pobre, namorados que ela não tem porque é feia, sorrisos que ela não tem porque motivos não há.
Pelo menos na escola tem uma biblioteca. É lá que ela se esconde, passa horas em boa companhia, Machado de Assis, Gilberto Freire, Von Martius, Inglês de Souza.

"Da próxima vez eu vou com um cabo de vassoura!"

O gato preto se espreguiça sobre o lençol remendado, abrindo a boca e estirando um palmo de língua para fora. Ela alisa o pêlo macio do bicho. Ele pisca para ela os seus olhos amarelos, lambe sua mão e mordisca os seus dedos de brincadeira.
          Lava o rosto e penteia os cabelos curtos. O tubo de Kolinos está vazio. Sem problema. Escova os dentes com sal. Toma o café quentinho enquanto a mãe tira do bolso da saia algumas moedas.

"Já sabe; se trouxer aroeira eu faço tu voltar."
Põe a xícara dentro do alguidar cheio de água e sai pelo portão do quintal. Aroeira... Aroeira é árvore sagrada, suas folhas, cascas e raízes curam doenças do corpo e da alma. Mas ela não sabe. Ela não sabe que cada passo seu vai penetrando na estrada do encantado porque ela é de lá, sua estadia no planeta foi um acidente de percurso.
As flores brancas do pé de lírio, solitário no oitão, tremulam ao sopro do vento. Sua dupla vista enxerga um caixão naquele lugar. Está e não está, esteve ou estará. Não importa. Ela não vê o rosto do defunto. Ademais já se acostumou com as visões. O Sol, novinho em folha, beija o seu corpo inteiro e ela ergue os olhos para o azul profundo dos céus. Pega a foice e corta o pau-branco em vários pedaços. Suas mãos, de dedos longos e finos (mãos de lagartixa, apelidou a mãe) ficam cheias de flepas.
Organiza a lenha no fogão. Corta gravetos bem fininhos e os dispõe como uma pequena arapuca. Queima um plástico para o fogo pegar. Na panela entisnada, o feijão espera de molho. Gorgulhos boiam na água. A mãe está contando que, quando era pequena, o seu pai vaqueiro acendia de tardezinha toras de aroeira que queimavam noite adentro para amanhecer em brasa e as mulheres distraídas mandavam os filhos pequenos, ao quebrar da barra, buscar fogo para fazerem a comida.

- Que nem Prometeu, - ela murmura, tirando as escolhas e lagartas do arroz.

- Que nem quem, menina?
- Prometeu, o titã que roubou o fogo do Olimpo para ajudar aos homens.

A mãe liga o rádio para cortar a conversa. Secretamente tem medo da filha. Desconfia que ela vê coisas, ouve coisas que os outros não. Ela fala com o gato preto e o bicho parece entender.
"Essa menina não é normal...", pensa a mãe, metendo a barra de sabão Pavão dentro da trouxa de roupa suja. No rádio de pilhas uma canção:

"Como será o amanhã?
Responda quem puder..."
 
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 26/05/2016
Reeditado em 02/07/2016
Código do texto: T5647415
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