O ano virou e o mundo acabou...

O ano estava acabando. De novo. Só que esse era especial. Era uma virada de ano, mas também uma de século. Sim. Era dezembro de mil novecentos e noventa e nove. Para ser mais preciso, dia trinta e um de dezembro.

E Marcélia sabia disso. Marcélia era uma moça simples, mas muito culta, pois lia tudo que lhe caía nas mãos. Tinha dezenove anos completos no último mês de novembro e por isso mesmo estava apreensiva. Explico: Marcélia tinha lido tudo – eu disse tudo – sobre a virada daquele ano e em especial, sobre um anúncio que já se fazia alarde há muito tempo: O fim do mundo.

O fim anunciado estava sendo alardeado desde o ano anterior e muitos e muitos milhares de horas haviam sido gastos com estudos e revisões sobre profetas e profecias, especialistas em especiais de TV e documentários. E Marcélia acompanhou tudo com dedicação e afinco. O fato de ter nascido no dia dezenove e ter completado dezenove anos no ano da virada do século era, para ela, um sinal mais do que evidente que ela era uma espécie de predestinada e que o ano era mesmo um sinal de fim dos tempos. O mundo ia acabar.

Marcélia, que assistia a tudo que via e lia tudo que se publicava sobre o assunto, começou a se preparar para o momento derradeiro. No quarto, sem o conhecimento da família, começou a estocar comida. Caso ela sobrevivesse à hecatombe, ficaria amparada pelos suprimentos ali armazenados. Tanto guardou que até a faxina no próprio quarto ela começou a fazer para que ninguém desconfiasse. A mãe de Marcélia achou aquilo o máximo. Estranho à beça, mas o máximo.

Quando a manhã do dia onze de dezembro apontou no céu, portanto dezenove dias antes da data fatídica – Marcélia tinha plena convicção da numerologia cabalística envolvida – ela começou a “purgar” seus pecados. Afinal de contas, precisava estar pronta e “limpa” caso fosse uma escolhida, uma civilização extraplanetária estivesse por aqui, ou o final dos tempos a apanhasse também.

Começou a sistematicamente atender a todos os pedidos e ordens da mãe – o pai era falecido havia alguns anos – e a reforçar as doses de carinho e atenção com a genitora. D. Susilânia estava achando aquilo tudo muito estranho, mas muito curioso ao mesmo tempo. Sabia das maluquices da filha e deu corda. Precisava ver até quando aquilo iria perdurar.

Uma das situações que deixou d.Susilânia ainda mais certa de que aquilo não duraria muito tempo, foi quando ela pediu à Marcélia que fizesse faxina na casa toda. D.Susilânia sempre pedia ajuda à filha, mas dessa vez pediu que ela fizesse o trabalho sozinha. E Marcélia obedeceu, sorridente, sem questionar. A mãe ria-se por dentro, enquanto em alguns momentos ajudava a filha, que mostrava dedicação ímpar na tarefa.

O tão aguardado dia chegou. Marcélia estava convicta que dali a algumas horas o caos no mundo estaria implantado. Havia uma semana que acompanhava os noticiários e reportagens sobre o assunto e só se falava nisso. Os preparativos já estavam em andamento na casa de d.Susilânia e tudo transcorria em ritmo frenético, como é de costume para esse tipo de festividade. Marcélia tinha se preparado para aquele momento – numerologicamente era uma predestinada - e tinha certeza que seria poupada nos primeiros instantes para assistir ao final do mundo como ela conhecia.

D.Susilânia estava terminando a mesa e a hora fatídica estava se aproximando. Marcélia, em pé de frente para a janela da sala do pequeno apartamento, já visualizava alguns fogos esporádicos – desses que aparecem no céu, movidos pela ansiedade das pessoas – e aguardava a hora final. O olhar era atento. Ouviu os convidados da casa e o burburinho crescente e então soube que a contagem tinha começado. A hora estava chegando. Dez segundos. Mãos cruzadas sobre o peito fechou os olhos e esperou. Oito segundos. Entabulou uma prece nos lábios. Dois segundos. Apertou os olhos e esperou o pior. Os fogos dispararam. Ouviu os convivas e as comemorações. Um estampido deu-lhe pequeno sobressalto, mas era só a rolha do champanhe. Foi quando, ainda de olhos fechados, sentiu um toque suave nos ombros. “Filha, feliz ano novo. Vem comer?”.