Noite estranha

Fulanos e fulanas me aguardam no fim da estrada para uma conversa ao som de Bob Dylan numa tarde nublada de inverno... sim... ao som de Bob Dylan... me esperam sorumbáticos, pálidos, olhos cansados, querem me falar sobre como me encontraram num caminho empoeirado no meio do nada há dois ou três meses, não sei, não me lembro mais... só sei que vão me levar para um lugar hoje, um sítio às margens de um lago frio e profundo onde cisnes dançam ao som de Bob Dylan e Miles Davis e um cão chamado Chinasky lê James Joyce no original e orienta os colonos residentes nas cabanas das redondezas a fazerem fogueiras verdes e a dançarem como loucos ao redor do fogo em noites de lua cheia... Um lago onde vive um monstro de nadadeiras douradas que brilham ao sol, quando tem sol, o que é raro, porque ali há muita névoa, o tempo todo quase só névoa no céu, e é frio, muito frio... No fim da estrada eles me aguardam, vejo seus olhos, suas bocas roxas de dentes brancos, bocas escancaradas... olhos abertos, as pupilas dilatadas como duas jabuticabas gigantes... Olham para mim e sorriem. A estrada é deserta e termina onde eles estão, embaixo de uma nogueira ou castanheira, talvez um carvalho, não sei... estão lá e sorriem... ouço já Bob Dylan e, ao longe, os latidos de um cão... Abraçam-me, mas não retribuo, tenho medo... Caminhamos juntos, escurece rápido, a tarde é fria, eles não dizem nada, só me conduzem... Mais latidos, e Miles Davis... Bob Dylan... Estamos chegando.

Acordo com febre, ofegante, faminto. Vou à cozinha e vejo ovos numa cesta perto do fogão. Pego uma panela e faço uma fritada de ovos com queijo e presunto, que ponho num pão integral e como em pé, olhando pela janela o céu escuro da madrugada... Volto para a cama, mas não consigo dormir. Ligo a televisão e estão lá os pastores curando as pessoas de problemas nas pernas, na coluna, nos braços, fazendo desaparecer caroços nos seios, nos pescoços... Não aguento e me levanto de novo. Vou ao escritório e ligo o computador. Ponho Miles Davis e me jogo no sofá com 'A paixão segundo de G.H.', onde leio: “Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois...”. Fecho o livro, ouço a música, deixo-a me acalmar... espero... espero...

Vou de novo à cozinha. Continuo com fome. Abro uma lata de leite condensado, dois furos grandes, e bebo tudo de uma vez, chupando como um bezerro faminto... Olho pela janela e a madrugada continua lá fora, escura, fria, misteriosa... Vejo uma luz num prédio lá em cima, no morro. Uma pessoa no terraço. Será que ela me vê? Um fulano qualquer, como eu, insone, vagando, esperando...

Miles Davis continua tocando no escritório. Volto para lá e pego 'Contra o dia', de Thomas Pynchon, onde leio: “A maior parte das pessoas é obediente e burra, como os bois. O delírio significa literalmente sair do sulco que você cavou. Encare esta situação como uma espécie de delírio produtivo.” Engraçado... Fecho o livro. Volto ao meu quarto. Minha mulher dorme profundamente. A televisão continua ligada nos pastores... Que loucura... Na parede escura, acima da cama, vejo um cisne verde e dois homens estranhos me encarando com olhos de jabuticaba...

Acordo de novo. Estou no sítio do meu pai, ao lado da minha mulher, que dorme. É quase dia.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 04/07/2016
Código do texto: T5686923
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