Noite muito estranha

Ramon acordou ofegante de um estranho pesadelo, no qual várias pessoas ficavam perguntando para ele: melhorou?, melhorou?, algumas até sacudindo-o, abraçando-o, beijando-o, e ele respondia: estou melhorando, estou melhorando, embora nem soubesse do que, de tão perdido que estava, buscando uma saída e nada, nada de luz no fim do túnel. E para fingir que estava melhorando ele concentrava toda sua energia nos músculos da face e esboçava um sorriso amarelo que acabava funcionando, afastando as pessoas para bem longe dele.

Ramon se levantou e foi ao terraço do seu prédio, de onde tinha uma bela vista da cidade. Eram três horas da madrugada. Vestia terno. Estranho, pensou, não me lembro de ter dormido assim. Olhou para baixo, no morro, e viu uma casa com a luz da cozinha acesa e um homem lá dentro, encarando-o, de pé, ao lado da geladeira, com o que parecia ser uma lata de leite condensado na mão. De repente o homem não estava mais lá, tinha sumido como num passe de mágica, e Ramon decidiu pular do terraço. Pulou sem medo, sabendo que lá embaixo encontraria a morte, o que, para ele, seria um alívio, mas de repente viu surgir em suas costas um par de asas enormes, que bateram com força e o levaram para o alto, acima do prédio, acima da montanha mais alta da região, acima das nuvens, e continuou subindo, subindo...

Ramon acordou assustado, suando frio, o coração disparado. Olhou para o lado e viu sua mulher, que dormia. Eram duas horas da madrugada. Ligou a televisão e lá estavam os pastores abençoando um monte de terra trazida de Portugal para entregar aos fiéis por alguma razão que ele não conseguia entender. Não aguentou e se levantou. Foi ao escritório e ligou o computador. Colocou o CD de uma banda norueguesa de jazz que ele adorava e se jogou no sofá com o livro 'Contra o dia', de Thomas Pynchon, onde leu: “Quando todas as máscaras são removidas, trata-se na verdade de uma investigação sobre nosso próprio dever, nosso destino.” Qual é o meu próprio dever, o meu destino?, perguntou Ramon, encarando um velho retrato de Kafka pendurado na parede do escritório.

Levantou-se e foi à cozinha. Estava com fome. Misturou um resto de feijão com arroz e carne cozida e comeu tudo frio, em pé, olhando pela janela o céu escuro da madrugada. Em seguida foi ao terraço. Estava de pijama. Fazia muito frio. Olhou o relógio: três da madrugada. Lá embaixo, uma casa, uma cozinha, uma luz acesa, um homem comendo alguma coisa, talvez um sanduíche ou uma torta, o mesmo homem do sonho... Que estranho, pensou Ramon. De repente, ouviu uma voz dizendo: pule, pule... E ele pulou.

Nada de asas dessa vez. Nada de voo. Só uma queda. E a morte.

Ramon acordou de novo, ofegante. Estava na sua cama, ao lado da esposa. Na televisão, os pastores pediam dinheiro, enquanto o número de uma conta bancária brilhava na parte de baixo da tela. Mudou de canal. Mas o que é isso?, perguntou Ramon, olhando a televisão. Uma mulher de branco e quatro freis franciscanos o encaravam espantados do outro lado. Todos olhavam para ele, Ramon, e era só isso, nada mais acontecia...

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 08/07/2016
Código do texto: T5691253
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.