Neve Nazista

Nevava nos campos de concentração, sempre nevava nos campos de concentração, estávamos na, na, sei lá onde, estávamos no inferno... Nevava no inferno. Os arames farpados, os guardas armados de metralhadoras que estraçalhavam pessoa com meio pente de balas, os cachorros que arrancariam nossas gargantas como se fossemos galos para abate, entre outras coisas que nos lembrava de como esta situação era ruim.

Escolhi a época errada de ser Judeu. Hitler decidiu que queria acabar com os Judeus, e suas ordens foram seguidas. Se tivesse a chance eu diria a sua cara que não fui eu quem perseguiu Jesus.

Nevava muito, o frio já fazia meus ossos virarem gelo, mas não ligo, logo, logo eles ligam o aquecedor, infelizmente tão forte que irá carbonizar nossa pele. De onde estou vejo outros campos, como um livro onde imprimiram a mesma coisa em todas as páginas só vejo a mesma coisa, e a mesma neve.

Cai a noite, nossas celas pútridas me fazem lembrar como eu gostava de minha casa. Havia mas quatro comigo na cela: Ishitar, Hüggen, Cüvalaine e sua filha Doroty. Ishtar era mudo, não falava nada, mas escutava muito bem, sempre lia as coisas, mas não sabíamos se ele sabia das coisas. Hüggen era um enigma, desconfio que ele sofresse de dupla identidade, ao dia era um sujeito simpático a noite era um sujeito duro e pessimista. Cüvalaine e sua filha Doroty eram os mais sociáveis de nossa cela: Cüvalaine era o tipo sossegado, morou na Inglaterra durante vinte anos onde casou e teve uma filha e escolheu a época errada de morar em Berlin. Doroty era uma garota de oito anos medrosa, passava o dia chorando.

Toca nosso despertador, uma musica infernal. Saímos como vacas hindus até o refeitório onde havia uma novidade: Algumas mesas estavam de coloração vermelha e outras estavam normais, fomos conduzidos para as mesas, me colocaram junto a Cüvalaine, Doroty e Hüggen numa mesa normal e Ishitar fora para uma mesa vermelha. Comemos aquela comida azeda, não podíamos deixar no prato restos, ao terminar não deram a ordem para levantarmos, ficamos parados em silêncio olhando uns para os outros como alguém que acaba de receber a noticia que ira esperar. Derrepente as pessoas que estavam na mesa vermelha começam a baixar suas cabeças com força dando progressivos baques batendo a cabeça com violência na mesa, Ishitar também. Alguns quebravam o nariz que sangrava, mas ficavam inertes. Doroty chorou em silencio, sabíamos o que aconteceu, sabíamos que eles comeram veneno puro em vez de comida.

Mais uma noite de vida agora com mais espaço nesta cela, Ishitar não será lembrado como eu ou qualquer um neste campo de concentração, ele não tinha nada para se lembrar. Naquela tarde eu ouvi algumas noticias de Borton, um guarda alemão que se julgava braço direito de Hittler... Ouvi ele falando com outros guardas enquanto tirava o veneno dos pratos. “Os russos já conseguiram conquistar três postos de controle!, gostaria de servir Füher nesta luta!”, continuei lavando o veneno nos pratos.

Na tarde do outro dia ao voltar para cela notei que Cüvalaine e Doroty já não estavam mais lá, perguntei a Hüggen:

- Onde estão...

-Incinerados, foram incinerados, diz Hüggem friamente – naquela tarde, levaram trinta para a sala de testes e foram incinerados, é tudo que sei.

Fico em silêncio, vejo Hüggen levantar de onde estava sentado e caminhar com dificuldades até a saída da cela, hoje ele voltaria mais tarde por que tinha que limpar o estábulo.

Novamente as mesas vermelhas, novamente mais mortes, novamente eu e Hüggen nos salvamos, mas agora muitos da nossa mesa morreram também, eles envenenaram quase toda a comida. Sabíamos que agora todo café da manha e outras refeições podem ser as ultimas... Ironia sobre “a ultima refeição”.

Hüggen me disse que os russos atacaram o norte, mas perderam. Foram suas ultimas palavras antes de levar um tiro na cabeça. Borton estava testando seu novo revolver dado por Hitler como condecoração de bravura. Cai na neve rezando que a segunda bala de seu pente fosse para mim, mas ele deu as costas e me deixou entre o sangue de Hüggen.

Neva, a neve cinza cai nos campos deixando a neve branca amarga, suja, fétida, visível, sem alma como nós. Não sei que dia, hora, mês, ano, estamos. A única coisa que sei que eu vou morrer em breve, talvez na próxima refeição, e que agora convivo com alguns fantasmas na minha cela.

A neve que cai são cinzas humanas do incinerador, sei disso, todos sabemos disto. Eu chamo esta neve cinza feita de gente de neve nazista.