O Médico a Comunista e a Ditadura

- Nome?

- Roberto Mathias Lobato.

- Idade?

- 33 Anos.

- Profissão?

- Médico

- Estado civil?

- Solteiro.

-Filhos?

-Não.

- Para onde o senhor vai?

- Vou até Minas Gerais, tenho uns pacientes por lá.

- Tem algum elo, contato, amigos, comunicação ou qualquer forma de envolvimento com comunistas? – a pergunta que vale um milhão de dólares.

-Se eu sou comunista? Não, não sou – minto.

- Pode passar, desculpe a intromissão – o soldado tira a lanterna do meu rosto e se afasta. Dou a partida no meu carro e acelero lentamente, os soldados passam olhando para meu carro.

- Ei você, Pare! – diz o soldado aproximando-se.

- Pois não? – meu coração acelera.

- Sua lanterna traseira está quebrada, de uma olhada nisto porque pode trazer-lhe problemas – o soldado dá as costas e eu parto novamente agora com o coração na garganta.

Afasto-me dali rapidamente, agora a estrada é livre até Minas Gerais onde está meu contato. Estamos em 1973, a ditadura se fortalece, e depois de uma falha tática muitos de nosso grupo foram presos.

- Tudo bem?- diz uma voz feminina no banco de trás: Era Elizabeth, uma comunista caçada pela ditadura. Estamos na estrada porque é muito perigoso para ela sozinha e como eu não sou “conhecido”…

- Nos livramos desta vez, por hora, mas não sabe até quando eles não vão pedir para revistar o carro. – digo dirigindo.

- Não se preocupe, eles não sabem do seu envolvimento.

- Eles não sabem de meu envolvimento… - repito lentamente, eu era apenas um médico há dez anos atrás até que tudo virou um caos, tudo ruiu, não sei como, mas tudo ruiu, agora estou eu numa estrada exatamente as duas e dez da manhã correndo contra o tempo para refugiar uma fugitiva comunista das garras dos militares.

- O senhor realmente não é casado e nem tem filhos? – a pergunta veio como um segmento a pergunta do militar lá trás.

- Sim, só menti ali quando me perguntaram sobre o comunismo.

- Sei, sei. – o assunto cessou e ela deitou no banco de trás. Uma chuva fina molhava os vidros do carro e o asfalto. Meu coração ia até a garganta toda vez que aparecia um farol no retrovisor do carro.

- O senhor mente bem – diz Elisabeth levantando e ficando a vista de meu retrovisor. Era uma garota magra com olhos muito azuis e cabelos curtos, sua pele branca como a neve e sua voz doce e delicada não mencionavam a força com que esta mulher, menina lutava... Ela tinha apenas vinte três anos.

- Não é que eu minta bem, eu só não menti. – ela riu e entendeu minha estratégia, ficamos mais relaxados quando falamos a verdade.

- Você é inteligente, espero lutar ao teu lado no futuro.

- Eu espero que este inferno acabe.

Vem os primeiros raios do sol daquela manha, dirigi durante doze horas sem descanso, não podíamos dar o luxo de uma parada, nunca, eles poderiam vir e nos pegar. Eu era acostumado a não dormir, quando somos cirurgiões dormir é apenas mais um atrativo da vida, mais um brinquedo e não uma necessidade. Elisabeth dormia profundamente segurando sua beretta, pistola que seu pai lhe deu antes de morrer agora era um amuleto que salvou sua vida e minha identidade.

- Elisabeth! Elisabeth! – digo olhando para frente.

- Oi – diz Elisabeth depois de um sono profundo, ela merecia cada segundo daquele sono pelos dois dias que tivemos.

- Estamos a algumas horas de Minas Gerais, se prepare pois provavelmente terá outra blitz por perto.

...

- Nome?

- Roberto Mathias Lobato.

- Idade?

- 33 Anos.

- Profissão?

- Médico

- Estado civil?

- Solteiro.

-Filhos?

-Não.

- O que o senhor veio fazer aqui em Minas Gerais?

- Vim tratar de uns pacientes.

- Tem algum elo, contato, amigos, comunicação ou qualquer forma de envolvimento com comunistas?

- Se eu sou comunista? Não sou não.

- Posso dar uma geral no carro? – meu coração gela junto com o resto de meu corpo, ouço meu coração bater e meu suor descer pela mão.

- Posso dar uma geral no carro? – o soldado repete achando que não ouvi, passou um caminhão do exercito na hora da primeira pergunta.

- Claro! – respondo como falava para pacientes terminais de câncer que vão sobreviver.

O soldado dá a volta no carro e abre o porta-malas, ouço Elisabeth engatilhando a beretta, quase consigo ouvir a bala indo até o cano da arma. O soldado bate com um estrondo a porta do porta-malas e vai até o “ponto X” o banco traseiro. Certamente quando ele tirar a lona que cobre Elisabeth, ela ira atirar na testa do soldado o - fazendo cair para trás e dando inicio ao fuzilamento de meu carro.

O soldado da uma olhada e avista a lona, aquela lona marrom usada para proteger remédios do sol, ele começa a tirar a lona, fecho os olhos e rezo para Deus. Um barulho, sangue nas minha costas, o soldado caindo para o lado, tiros de metralhadora, abaixo a cabeça e rezo.

- De a partida! Não são para nós! – diz Elisabeth.

Olho no retrovisor, vejo soldados atirando contra um carro que parecia ser suspeito, no primeiro tiro do carro a bala foi perdida e acertou nosso soldado... Milagres acontecem. Os soldados estavam ocupados demais atirando e nem perceberam minha partida. Meu coração batia tão forte que achei que iria morrer.

Já em Minas, fomos até uma cabana próxima a cidade de Belo Horizonte, paramos o carro, sai primeiro e me certifiquei que não fui seguido, abri a porta e saiu Elisabeth... Meu banco de trás estava empapado de sangue, Elisabeth também. Seu corpo magro e branco agora com tons em vermelho não parecia de uma mulher lutadora e sim de uma doente da Etiópia. Ela bateu a porta da cabana e falou: “Viva a liberdade, morte a Maldade.” Uma voz lá de dentro disse “Iniciamos a luta, a luta contra a ditadura!” e a porta abriu, ela entrou virou me deu um beijo e disse:

-Adeus! Obrigado por tudo, me lembrarei de você quando ganharmos a guerra.

E assim foi, me livrei de meu carro, trabalhei como medico num interior muito distante, esperei o fim de aquele inferno acabar.

Só tive noticias de Elisabeth em 87 quando descobri que ela foi presa ao tentar voltar para o país e morta, não chorei, nem fui ao enterro de suas memórias porque nunca acharam o corpo, e nem rezei por ela, fui frio, ela preferiria assim, mas ganhei um suvenir disto tudo, dias depois de termos nos despedidos naquela cabana próximo a Belo Horizonte uma encomenda chegou por um homem negro de cabelos rastafári, um pacote com uma carta contendo apenas um “Muito Obrigado” e uma Beretta.