Conversas com o toureiro morto

Eu bem que gostaria de conversar com um toureiro vivo. Simplesmente impossível. Jamais fui à Espanha e, mesmo que estivesse lá, um profissional da área não teria o mínimo interesse em conversar com uma reles professora aposentada de um país de terceiro mundo, que sempre nadou nos descaminhos da vida, desvalorizando as mulheres, os idosos, banalizando os sonhos, inquietudes e necessidades da infância e juventude. País de impunidade, promiscuidade, roubalheira, só que, agora, tudo é sabido, em todas as partes do planeta.

Mas, mesmo assim, sempre tive uma enorme vontade de olhar nos olhos de qualquer torturador. Seja carrasco de humanos, seja de animais. Vontade de olhar nos olhos para tentar encontrar uma leve, tênue sensibilidade. Daí viria alguma suposta esperança. Quem sabe, aí, alguma fala, mesmo mansa, poderia levar essa pessoa (ou pseudopessoa) a refletir sobre o bem e o mal. Doce ilusão a minha! Na verdade mesmo, eu acho que conseguiria dizer algumas coisas. Outras vezes, acho que não conseguiria dizer nada, tão difícil é a condição humana.

Voltemos ao caso do toureiro morto no último sábado.

Muito me custa a compreender o que faz um rapaz, assim tão jovem, se dispor a ganhar dinheiro, ser astro, vibrar, sorrir ao matar um animal que, ao que tudo indica, é irracional e não fez mal algum à humanidade.

E não é só – vestir-se a caráter, se colocar no centro de uma arena, ao som de uma multidão ruidosa, ávida de sangue e com os olhos bem arregalados, brilhantes, a esperar o momento derradeiro. Aí sim ,mais aplausos, fotos, notícias. O toureiro seria ovacionado por alguns longos minutos enquanto o animal, bem, o animal, estaria apenas se esvaindo em sangue.

Sem dúvida, o infeliz quadrúpede haveria de urrar em função das dores inimagináveis, uma provação sem limites, a banhar aquele chão maldito com sua essência tão vital.

O que a vida fez de você, toureiro? E de outros que já se foram, os que virão? Ou melhor, o que você fez da vida, toureiro? Um palco macabro onde a sandice e a crueldade seriam maiores que qualquer outra causa, que sabe. Você fez da vida um teatro monstruoso, pior ainda, excitando um gosto acre de sangue na boca de multidões que dizem que tourada é apenas um traço cultural da Espanha e nada mais. Faça-me o favor – mude, então, o conceito de cultura.

O que fez você pensar que aplausos, dinheiro, fama, fotos nos jornais e revistas, algumas moças belas, perfumadas, encantadas a sorrir pela sua macheza pudessem ser mais comoventes e convincentes que a morte sob tortura de um animal escolhido a dedo pela braveza, pelo seu tamanho e alguma outra singularidade?

Moço você, toureiro. 29 anos poderia ser o meu filho.

E, caso fosse, não seria toureiro. Seria alguém capaz de respeitar a dor alheia, o espaço alheio, as particularidades e direitos de cada um.

É mais gostoso viver assim, rapaz. Na simplicidade, sabendo os seus limites e possibilidades, buscando, pelo louvor, ascensão social. E é bom saber que os outros têm o direito de viver, sejam humanos ou não. E que todos devem, ao menos, tentar uma harmonia, um equilíbrio nas relações. E nem é tão difícil assim. Basta exercitar diariamente os ensinamentos de São Francisco. Afinal, o Chico é o cara.

Você, jovem, perdeu a vida sem nenhuma dignidade. Tão cedo você foi embora sem aprender o básico das relações. Que vergonha, não?

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 10/07/2016
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