Crônica do Tempo

Levantei sentindo-me velha....

Estranhei o cheiro do ar, o gosto do pão... Acho que não se faz mais pão como antigamente, como quando eu era pequena e meu pai me levava nos ombros até a padaria. Aquele cheiro de pão fresco entrava pelo nariz e estranhamente me deixava feliz.

Olhei a rua e também ela me pareceu desconhecida. Os mesmos vizinhos, as mesmas casas, mas o ar... O ar era diferente. O dia fresco há alguns anos seria um convite para um passeio de bicicleta. Sentir o vento e voar.

Crianças voam.

As vezes eu me lembro que respirava embaixo d’agua, na piscina de plástico azul onde moravam tubarões e sereias. A piscina de 1.000 litros parecia imensamente grande, quase um oceano onde eu passava horas nadando de ilha em ilha.

O jardim virava floresta, cheia de perigos e animais selvagens. A grama verde quantas vezes não virou lagoa azul? Hoje a grama me causa coceiras e os terríveis animais selvagens viraram gatos domésticos.

Mas eu me nego a acreditar que sempre foi assim. Não. Absolutamente já existiram leões nesse quintal, e ali na frente, onde hoje repousam sonolentas samambaias ficava um pedaço relativamente grande da Floresta Amazônica. E como desbravadora que fui um dia, adentrava sem medo a mata serrada em busca dos Martírios, do Eldorado, da Cidade Perdida dos Incas...

Eu até tive um tesouro... Um valioso tesouro: fósseis de uma galinha pré-histórica, que encontrei enterrados numa clareira da floresta. É claro que tentaram, em vão, me convencer que aquilo era o resto do almoço de domingo.

Eu tinha a certeza de que bastava acreditar e tudo, tudo o que eu quisesse seria real.

Eu acreditava em sonhos quando deixei minha floresta encantada e parti pra um desafio maior. E tive que sem mais nem menos, crescer. E crescendo eu desaprendi a voar e nunca mais encontrei a floresta que eu sei, ainda existe em algum lugar do meu quintal.

Juntei minha bagagem, e ao invés de procurar o fim do Arco Íris, fui procurar meu destino... Que tola eu fui... Destinos não se encontram, destinos se concretizam.

Nunca mais vi tubarões na minha piscina, o que em parte foi bom, por que se acaso hoje os encontrasse provavelmente teria um mal súbito e desmaiaria ali mesmo.

Hoje eu levantei velha. Saudosa de um tempo que me parece distante, por vezes até surreal.

Acordei pensando em que parte da estrada da minha vida deixei sem querer cair da bagagem meus sonhos. Pensei em escrever uma carta e soprá-la ao vento, para que se acaso alguém que caminha atrás de mim, por ventura tenha encontrado um pacote velho, meio rasgado, com sonhos gastos de tão sonhados pudesse guardá-lo pra mim...

Acordei com saudades da menina que fui.

Se hoje eu a encontrasse, será que se orgulharia de mim? Provavelmente faria manha se eu dissesse que perdi o pacote de sonhos. Ia chorar dizendo que deu um trabalhão pra conseguir juntá-los. São rebeldes os sonhos, se não se sentem “sonhados” simplesmente vão embora, e quando passos a frente se precisa deles...Não há meios de encontrá-los. Por vezes se escondem entre uma mágoa velha e uma tristeza gasta.

É... Acho que é melhor procurar direito... Talvez não os tenha perdido, talvez a Amazônia ainda fique ali, no quintal. Talvez seja só olhar mais atentamente que poderei ver os leões...

Talvez...

Mas hoje não... Hoje eu levantei terrivelmente velha.

Meri Jaan
Enviado por Meri Jaan em 18/07/2007
Reeditado em 02/10/2007
Código do texto: T570060
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