Pequenas histórias 148

Dia três de junho

Neste dia três de junho, terça-feira, o céu tinge-se de um amarelo avermelhado prenunciando sol. No quadrilátero da janela do ônibus, a manhã se descortina na limpidez das nuvens deslizando ao sabor do vento. Vento carregado de friagem levando para dentro dos ossos o enrijecimento dos nervos numa sofrível tentativa de proteção para não sentir frio.

O ônibus vira para a esquerda e entra na Radial Leste. Cai na correnteza metálica dos aflitos cansados que se imaginam voltando para a casa no fim do dia. Em linha reta, o motorista conduz o ônibus com a responsabilidade de não se atrasar. Os passageiros se entregam ao sono confiante na sua mão que, hábil, desvia das corredeiras indo para águas não turbulentas. Mostrando profissionalismo, confiantes, os passageiros se entregam ao sono profundo. Alguns ressonam expressando em sons inaudíveis dominados pelo profundo sono. De outros nada se ouve. Fora os que se cobrem com cobertores, máscaras para sono ou travesseiro para a cabeça repousar no confortável.

Mãos esgarçam o espaço esticando os nervos adormecidos pela posição mantida por algum tempo. Momentaneamente o pensamento desliza em vários pontos procurando apoio no dissipar a longa viagem. Por uma hora mais ou menos, o corpo entregue ao balanço do veículo, dispersa os sentimentos no sono dolente ou na leitura rasante de algum livro.

Pela janela suja com manchas oleosas, talvez alguma cabeça pesada de sono tenha encostado seus cabelos cansados, vejo o populacho tentando alcançar o destino de cada um. Plena sete horas da manhã, há avalanche de passos que se dirigem aos desconhecidos, alguns com o caminho já traçado, percorrem os limites de sua aflição no corre-corre.

Volto os olhos para as letras do livro. O tédio da leitura me proíbe de avançar duas ou três, forçando, quatro páginas, assim sendo, fecho definitivamente o maçante romance.

Ajeito-me numa posição que acho confortável, solto os ossos enrijecidos de frio, deixo livre os músculos que se apoiam na carne entregue a dolência, procuro num relaxar sentir o peso, o cansaço de todo o corpo, entregando-me ao pulsar das veias jorrando o sangue ao coração. Fecho os olhos, imagino-me num barco frágil descendo a corredeira de sangue, chego até sentir nos lábios o gosto amargo agridoce dos glóbulos na língua empurrando garganta abaixo.

Nisso, ao virar uma veia, deparo com um obstáculo. O barco bate na saliência gordurosa, racha-se ao meio, sou jogado para o alto, logo em seguida despenco vertiginosamente na corredeira vermelha.

Sinto-me perdido, começo afogar, engolindo sangue, a garganta repele a matéria viscosa e, de supetão acordo. Chego ao meu destino. Desço do ônibus e caminho devagar no tempo que ainda me resta.

pastorelli

Pastorelli
Enviado por Pastorelli em 18/07/2016
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