A insônia de Ramon

Ramon acordou com o som dos seus pensamentos desabando em sua cabeça como uma avalanche numa montanha nevada da América do Norte, em meio a uma ventania assustadora que vinha da parte de trás do seu cérebro. Eram três e quinze da madrugada. “Estou melhorando”, disse Ramon para si, “pois ontem acordei mais cedo, a ventania na minha cabeça era como a da nevasca de 'Os oito odiados', do Tarantino (com direito a tiros de Winchester e flashes de sangue congelado na neve), e a avalanche descia gritando”. Ramon estava tentando se livrar do remédio para dormir, por isso tinha que lidar com noites assim, geladas, tempestuosas, barulhentas.

Vasculhou a cama à procura do controle remoto da televisão. Achou-o embaixo da coxa direita da sua mulher, que dormia como um anjo, talvez sonhando com jardins floridos ou com a vitória do Cruzeiro, seu time do coração.

Ramon ligou a televisão e colocou no canal dos pastores. A pregação era tentadora: “Você, que não aguenta mais...”. Ramon não aguentava mais. A maioria do povo não aguenta mais. “Se nada dá certo para você...”. No Brasil, quase todo mundo acha que está amarrado, que pode ter mais, que precisa de mais – coisas, dinheiro, saúde, amor, compreensão, viagens, etc. “Livre-se da inveja!”. Sempre há muita gente se sentindo invejada, vítima de olho gordo, de maldições. “SESSÃO DO DESMANCHE ESPIRITUAL! LIGUE AGORA!”. Ramon anotou o número. “Quem sabe?”, pensou. Em seguida assistiu aos depoimentos dos fiéis que, depois de participarem de várias sessões, prosperaram financeiramente, livraram-se de depressões terríveis, dores, tumores. Ouviu as explicações de uma ex-bruxa, que abandonara a magia negra e trabalhava agora para os pastores. “Quem sabe?!”, repetiu Ramon em voz alta, coçando a barba de seis dias, já cheia de fios brancos. Sua mulher virou-se na cama, resmungando: “Desliga isso e vai dormir, Ramon”. Mas Ramon não queria tomar o remédio... e aquelas cenas dos pastores desmanchando trabalhos de magia negra e fazendo as pessoas melhorarem de vida eram muito animadoras.

Mas logo Ramon caiu na real e balançou a cabeça, que continuava em tormento, com a avalanche caindo estrondosamente montanha abaixo, e a ventania, o frio... “Não”, disse Ramon, “isso é loucura”. Desligou a televisão, fechou os olhos e tentou se concentrar na imagem da antiga casa de seus avós, que nem existia mais, mas da qual ele se lembrava com detalhes: o alpendre onde a avó e os tios descascavam laranjas nas tardes de domingo, a sala com a foto da bisavó, tirada em 1925, o quarto dos fundos, onde muitas vezes ele dormira ouvindo passos de fantasmas no corredor, a mesa onde sua tia lia para ele contos de fadas e livros sobre cobras e anfíbios... Lentamente a avalanche foi desaparecendo, a nevasca se acalmando e a paz lhe cobriu a alma com seu manto perfumado... Nenhum tiro, nada de sangue... Silêncio.

Às quatro e vinte da madrugada, Ramon dormiu. Sem remédio.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 27/07/2016
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